sábado, 2 de abril de 2016

A Fé sem Esperança




Um dos sinais mais claros do que não é a caridade é a valorização curricular atribuída a
acções humanitárias. Hoje fazer uma ação humanitária beneficia o seu executor relativamente aos seus colegas. Este tipo especial de caridade pública é a filantropia e o seu agente é o principal beneficiado de um investimento com retorno garantido. É uma falsa caridade. O seu objectivo é a excelência, i.e., a promoção profissional e um alto salário. É a marca do nosso tempo, a época de Mercúrio (negócios e dinheiro), de Saturno (carreira) e de Júpiter (poder e visibilidade). Esta ideia da antiguidade, ressurgida com o calvinismo e agora globalizada nas instituições de ensino, é repugnante. É a “aparência de caridade” de que fala São Paulo. É a esperança neste mundo.


As portas do céu não têm ferrolhos,
Nós não guardamos ouro
Os homens podem desenraizar-se da origem de tudo
Ou dar nome a um pecado sem nome;
Mas quer falhe quer ganhe
Um homem bom é difícil de encontrar


Perdido o sol, como regressaremos a casa? Morto Deus, como remir o homem? Se Deus não existe, não é possível a existência da verdade nem de ética – morto Deus tudo é possível, como dizia Dostoiévski. Uma ética antropocêntrica nunca poderá ignorar o seu ponto de partida: um ser que possui em si a raiz do mal. Como dizia Chesterton, se existe um ponto defendido pela Igreja difícil de refutar, é o da doutrina do pecado original. Exista Deus ou não, é inegável que o mal caminha com o homem. A guerra, o sofrimento, a fome, a doença, a inveja, a depressão, a morte, todos acompanham a existência humana. O progresso tecnológico, a melhoria das condições de vida e o bem-estar material, não subtraíram o homem do seu misto de grandeza e miséria. Nenhum conhecimento ou filosofia resolveram o problema da necessidade de consolação. O actor Liam Neeson dizia há pouco tempo, a propósito da morte de sua mulher, que todo o ser humano precisa de ser abraçado com amor e de uma voz meiga: “Não te preocupes, está tudo bem, tudo se há-de resolver.” É aquele “Eu estou aqui” que a Mãe de um Cristo caído por terra a caminho do Calvário lhe dirige no filme de Mel Gibson. É aquela voz que nos diz: “Eu não te deixo só.” É o “You will never walk alone.” Scruton é o filósofo certo, a quem esta necessidade humana de consolação não escapou.



Os homens do oriente podem nomear as estrelas
Marcar os tempos e as vitórias
Mas os homens assinalados com a cruz de Cristo
Circulam alegres na escuridão…





Este argumento ontológico, argumentum e gaudio, a necessidade da alegria e do sentido de humor para a saúde humana é uma real contribuição de G. K. Chesterton para a filosofia moderna. O homem ri-se de si e da sua circunstância, superando ambos e projectando-se além deles.



Os sábios sabem que coisas pérfidas
Se encontram escritas nas estrelas
Eles acendem lâmpadas tristes, tocam cordas melancólicas,
Ouvindo as grandes asas púrpura,
Onde os antigos Serafins
Ainda planeiam a morte de Deus…



Mas, se Deus morreu, Deus teve que estar vivo e um Deus vivo nunca morre. Para os clássicos, como Parménides ou Zenão, nenhuma das aflições do homem tocavam Deus, que era em si mesmo eterno, imutável e indiferente, sem deficiência nem contingência. As orações pagãs eram meras súplicas sem retorno. O Deus cristão, escândalo para judeus e pagãos, é um Deus sofredor, coberto de miséria e fealdade, coberto dos erros de outros. Irreconhecível como Deus, percorre todo o vale da abominação humana: “estive no cárcere”; é uma quase blasfémia da ideia de Deus. Este Deus sofredor (e criminoso por interposta pessoa), que acompanha toda a alma incerta e que sofre, é uma fonte de consolação. Ele é igualmente mais Ele próprio porque desvinculado de toda a mitologia, de toda e qualquer ideia humana de Deus. Ele não surge no meio do cristianismo, como um desenvolvimento ocidental; ele surge no meio do judaísmo, como uma blasfémia oriental.


Este Deus abandonado por Deus, por amor dos homens, aparece abandonado pelos homens pela alienação de Deus. O homem moderno, homem-máquina, integrado na civilização tecnológica e no conforto, vendeu a sua individualidade à igualdade. É o “último homem” de Nietzsche. Para Nietzsche, só o “super-homem”, livre do medo e da moralidade cristã, poderia resgatar a humanidade de tal marasmo e decadência, resultante da auto-alienação do homem.


O homem-máquina desistiu de ser homem e identifica-se pelos parâmetros da máquina que fabrica: a economia é a sua fé, o progresso a sua esperança, o futebol a sua consolação. Vive nas redes sociais e nos media, na sociedade pelos bens que ostenta; tornou-se uma coisa. Ritualizado pelo fim de semana e pelas férias, desiste do valor de cada dia e é facilmente submerso pela “nova onda” que submerge os padrões do direito natural, da inviolabilidade da vida humana e da individualidade e privacidade de cada criatura humana. O ocaso de Deus acompanha-se do desaparecimento do homem.
Como sempre na história da Igreja, a morte é uma ressurreição. Para os cristãos, um aproximar da verdadeira fé. Menos numerosos na Europa, fora dos centros do poder, mas mais cientes do caminho do que antes, porque menos mundanos. São o sal da Terra.






Mas tu e todos os de Cristo
São ignorantes e bravos,
Combatem guerras difíceis de vencer
E almas difíceis de salvar.



Keith Lemna lembrava num artigo de 25 de Janeiro de 2016, na Distributist Review que a obra do teólogo, filósofo e sociólogo alemão Romano Guardini (1885-1968), foram relembrados pelo papado de Francisco, um seu admirador. A encíclica Laudato Si’ estimulou a releitura de The End of the Modern World (1950) ao tomá-lo como ponto de referência. Tal como Guardini, Francisco atribui a um monolítico e global “paradigma tecnocrático”, a crise antropológica e cosmológica da modernidade, da qual resulta uma atitude racionalista e utilitarista da espécie humana perante os recursos naturais e a própria comunidade humana.



Eu não te digo para teu conforto,
Sim, não para te agradar,
Lembra-te que os céus ainda vão escurecer mais
E o mar transbordar.



Para o Papa, tal como para Guardini, só existe um meio de o homem se alienar desta alienação do homem-máquina: abdicar de um certo conforto no bem-estar material e na carreira, imitando Cristo, i.e., não vendendo a sua alma pela carreira, não abdicando da família pelo conforto ou pela notoriedade, partilhando com quem necessita de auxílio, sendo humilde, lutando por objectivos mas afastando-se do elogio. No fundo, ecoando Agostinho: “Prefiro os que me criticam porque me corrigem do que os que me elogiam, porque me corrompem.”


Os cristãos constatarão a necessidade de serem imago Dei, a face de Cristo, pelo exemplo da sua vida. Só esta alienação do materialismo resultará na liberdade do homem. O sacrifício e a humildade, uma vida sem cunhas, não são sinais de uma moralidade de escravos, como dizia Nietzsche, mas sim uma marca de liberdade. O “super-homem cristão” é diligente no presente, confiando-se à Divina Providência no futuro. Se não reconhecermos o nosso egoísmo e a alienação de Deus, nunca encontraremos solução para a perda de dignidade humana nem o valor ontológico da humildade e do amor.



A noite cairá sobre ti três vezes,
E o céu como se fora um elmo.
Consegues ser feliz sem motivo,
Sim, ter fé sem esperança?






O que é essa “fé sem esperança” e essa “felicidade sem motivo” que Chesterton coloca na boca da Mãe de Deus? A alegria de escolher o lado certo e a determinação de combater o bom combate, mesmo que a derrota pareça certa – a alegria da escolha certa e o abandono à divina Providência quanto ao resultado final do combate, é uma afirmação neste mundo da existência de uma outra vida – uma fé que aponta a esperança. Essa “fé sem esperança”, conceito desenvolvido por Chesterton em A Balada do Cavalo Branco, relaciona-se com o objectivo último da vida humana, que não é a excelência nem a felicidade. O objectivo do ser humano é a verdade. Nenhum ser humano é indiferente ao erro ou à incerteza. Então essa fé sem esperança é um argumento ontológico. O homem encontra a paz pela certeza de ter escolhido o lado certo. 

A vitória pode ser incerta ou improvável, mas o homem combate com o apoio da verdade e da justiça. Como sempre afirmou Chesterton, a vitória fácil é sempre repugnante. Há guerras que se ganham perdendo. Há guerras que se ganham quando se pensavam perdidas. Há guerras que não se ganham nos limites temporais estreitos da nossa vida. O homem reconhece o seu limitado horizonte temporal e a natureza da batalha que ultrapassa em muito o domínio desta realidade e deste mundo. É uma fé cuja esperança se projecta dentro e fora deste mundo como reflexo de uma realidade interpenetrada e complexa.


Uma vitória no campo moral nunca é definitiva, porque o mal recorre no coração humano e na sociedade. É precisamente quando se ganha, quando se tem glória, que mais se levanta a guarda ao mal e se abre a porta ao orgulho. É quanto mais nos julgamos maiores que corremos o risco de ser menores – é um paradoxo. É por isso que a oração é fundamental, o contacto da criatura com o Criador.



Eles voltarão, não com navios de guerra,
Não considerarão os nomes certos
Comerão apenas livros,
A tinta sujar-lhes-à as mãos…pelo terror e por contos cruéis
Maldições até aos ossos e sobre a família,
Por estranha e fraca vitória,
Amaldiçoados desde o início,
Pelo pormenor de pecar
E pela negação do pecado.





António Campos


(Dedico a análise a este extracto do poema de Chesterton, A Balada do Cavalo Branco, à professora Amélia Pais que teve a amabilidade de oferecer Os Lusíadas em Prosa aos meus filhos, facilitando deste modo a sua aproximação a esse expoente máximo da Língua Portuguesa que foi e é Luís Vaz de Camões. Para ela, após uma vida dedicada aos seus alunos e aos outros em geral, também eu peço a misericórdia de Deus).


Bibliografia:

G. K. Chesterton, A Balada do Cavalo Branco



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