segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Um Rumor de Anjos










Como proceder perante uma época que toma o relativismo como medida de avaliação do passado? No juízo do presente, o passado é relativizado, mas não o presente. Se a história tivesse uma progressão linear talvez fizesse sentido ignorar o passado ou pelo menos considerá-lo menos relevante, no sentido em que a avaliação de uma situação à luz do passado seria sempre insuficiente, comparada com o presente. Mas se cada época tiver dado uma contribuição específica à humanidade, então cada época tem os seus olhos e o seu valor, espelhando a seu modo uma realidade multiforme.

Como dizia Agostinho, Nullus quippe credit aliquid, nisi prius cogitaverit esse credendum (ninguém acredita em algo se antes não souber que é credível). Agostinho colocou a perspectiva da sociologia do conhecimento: cogitatio et credenda, o que é conhecido e o que merece crédito. A plausibilidade das estruturas do conhecimento, a sua aceitação e validação por outros, encontra-se falseada na actualidade pelo relativismo e pela noção de que se chegou ao final da história, de que os homens de hoje detém a verdade, ainda que seja a verdade de que a verdade não existe.

A sociologia do conhecimento liberta-nos da tirania do presente no sentido em que nos informa que cada época não é o pináculo, mas apenas um momento na história. A resposta perante os relativistas da modernidade é, então, lembrar que também o seu juízo é relativo e não absoluto.




Usando as palavras de Adolph Lowe, "aquele a quem a fé não é revelada é melhor que tente ser verdadeiro". É Peter Berger quem, utilizando as palavras de Feuerbach, “toda a teologia é antropologia”, vira o argumento do avesso: a teologia não tem apenas ponto de chegada a partir da Revelação, mas a antropologia pode efectivamente conduzir à teologia e a uma outra realidade.


Para a teologia protestante, a linha divisória com o catolicismo seria a analogia entis do tomismo. Para Karl Barth não haveria nenhum sentido homem - Deus, apenas o sentido Deus - homem, da Revelação. Por outras palavras uma antropologia poderia ser teologicamente dedutível mas não haveria qualquer possibilidade de indução da antropologia para a teologia.


É o Anknüpfungspunkt, o ponto de contacto entre a Revelação e a situação do homem. Enfatiza a miséria da condição do homem e a solidão humana. Quanto pior a condição humana, tanto mais credível seria o sentido unívoco da Revelação. A antropologia sombria do existencialismo encaixa nesta suposição, tal como o sentido marxista da revolta do proletariado, o "quanto pior, melhor". Freud torná-la-ia mais sombria ainda, com o desespero resultante do pessimismo: o homem seria um ser incestuoso, assassino, feito da pior miséria, sem qualquer esperança, guiado por pulsões irracionais. Para os crentes, restaria a fé no sentido unívoco da Revelação, a esperança na Graça. Mas até Camus se insurge contra este extremo pessimismo: “mesmo num tempo de pestilência, aprendemos que existem mais coisas a admirar no homem do que a desdenhar.”


A questão então que se coloca é a seguinte: existe alguma possibilidade de um ponto de partida da antropologia para a teologia? Não se trata de encontrar, como dizia Newman, no mundo empírico sinais de transcendência, mas sim no próprio comportamento humano. Não no sentido dos arquétipos junguianos, de símbolos gravados na mente inconsciente, comuns a todos os homens. O sentido é outro: esses comportamentos não são inconscientes, nem precisam de aflorar, uma vez que se encontram na contínua experiência quotidiana. Qual é a natureza de tais comportamentos?





1 – A tendência para ordenar, mencionada por Eric Voeglin. 

Cada sociedade humana na História é um todo ordenado, uma estrutura de conhecimento próprio, que se ergue face ao caos. É dentro deste sistema de referências (moral, religioso, filosófico, económico, social e político) que se movem os indivíduos dessa sociedade.

Existe uma fé humana na bondade da ordem, uma fé ancorada na confiança do homem na existência da realidade. A psicologia social diz-nos que não existe possibilidade de maturação psicológica nem de socialização da criança sem esta crença definitiva na realidade.

A tendência do homem para a realidade funda-se na convicção de que a realidade está como deveria estar, está em ordem e é possível de alcançar. Dizer que o mundo é real é um acto de fé.
Deste ponto de vista, cada gesto de colocar as coisas em ordem é um gesto de transcendência.

Um exemplo prático é o modo como a mãe assegura à criança que acorda de um pesadelo nocturno de que “está tudo bem”; “Não tenhas medo, está tudo bem. A mamã está aqui.” Como pode a mãe afirmar sem mentir de que “está tudo bem”? Apenas se admitirmos que a segurança que fornece se funda numa concepção da realidade como tal. O papel da mãe como tutor e agente integrante e socializador da criança num mundo com ordem e com sentido. A mãe como sacerdotisa de que “tudo se encontra em ordem”, i.e., “tem fé na existência e em mim”. No núcleo de alguém se tornar humano, no centro da socialização do processo de aprendizagem, encontra-se uma fé numa realidade ordenada e com propósito.

Fora deste contexto, de um ponto de vista estritamente “natural”, a mãe mente. Como pode a mãe dizer que não há problema nenhum na realidade se é essa realidade o próprio leito de morte de qualquer indivíduo e da sua aniquilação total? Este mundo não só matará a criança como matará igualmente a mãe. No final, todos ficaremos entregues às trevas da nossa própria aniquilação. Neste contexto reside a afirmação de Freud: “A religião é uma fantasia infantil de que os nossos pais governam o universo em nosso favor e o adulto deve libertar-se dessa ilusão apenas para se lançar nos braços de uma mais realista resignação estóica da aniquilação.”

O argumento da ordem reside não num componente ético mas metafísico: a ordem humana corresponde a uma ordem que a transcende e à qual o homem se pode entregar com confiança, porque ela espelha o modo como se ordena o universo. Um universo ordenado e racionalmente confiável. Desse ponto de vista a segurança parental não se baseia numa mentira de amor, mas antes na confiança na verdade de uma ancoragem da situação do homem na realidade. Deste modo, pode ser que Freud tenha razão ao afirmar que a religião é uma projecção da criança, mas apenas para corroborar que tal projecção resulta de uma reflexão da realidade última, por meio da atitude dos seus pais. A religião não é pois uma projecção da ordem humana, mas antes uma reivindicação real da existência de uma ordem – é a fé indutiva. Indutiva no sentido em que se inicia a partir da experiência.





2 – O argumento do jogo ou de brincar.


Toda a vida do homem se encontra rodeada de elementos lúdicos. A cultura como tal, seria impossível sem este elemento. Mas o que geralmente não nos apercebemos é que enquanto brincamos ou jogamos, parecemos entrar para outra dimensão e suspender o tempo. Por isso nos surpreendemos como o tempo decorreu tão rápido e a noite entretanto caiu. Todo o ser humano já passou por esta experiência, o que só prova que ela é universal e está inscrita na natureza humana.

Quando jogamos um jogo que nos enche de prazer experienciamos a eternidade. A finalidade do jogo é a alegria. E a alegria, tal como jogar ou brincar, também se ancora na eternidade: “Toda a alegria é eternidade, toca fundo na eternidade”, falava Zaratrusta. O jogo não é momentâneo, possui mesmo uma estrutura temporal própria. Ainda que não percamos a noção da nossa marcha inexorável para a morte, quando estamos realmente felizes, independentemente da nossa idade, naquele momento particular, a alegria parece ser “para sempre” – como quando um filho escapa ileso a um incêndio numa discoteca ou a um acidente de avião, ou quando recuperamos a nossa filhinha, perdida num hipermercado. O bem improvável proporciona uma alegria para sempre. A morte perde a sua tirania. Afinal ainda há coisas mais importantes que a morte…ou que a nossa própria vida.

Quando um avô brinca com os netos, ele reganha não só aquele sentido profundo da alegria próprio da inocência da infância, como por momentos ganha, como é característica do jovem adulto, a noção da imortalidade prática, i.e., da morte remota.

Um outro exemplo é o das pessoas que se continuam a casar ou a tocar piano em tempo de guerra.
A lógica do argumento do jogo é o mesmo da do argumento da ordem. A sua intenção aponta para além do que é natural, para o que é sobrenatural. 





3 – A esperança.


A existência humana apresenta-se sempre orientada para o futuro. O homem realiza-se em projectos. É pela esperança que o homem ultrapassa a contingência do aqui e agora. É pela esperança que o homem encontra um propósito, mesmo em pleno sofrimento e desespero. Um homem que sacrifica a sua vida por outros dá testemunho de um sinal de transcendência. Embora, como dizia Sartre, nós não possamos experienciar a nossa própria morte mas apenas a morte de outros, não existe dúvida nenhuma de que no fundo do ser humano, quer psicologicamente quer moralmente, existe uma recusa de que a morte seja a última palavra sobre a vida.

Qualquer voto de esperança que um homem faz é um voto de confiança na perenidade da sua vida e na boa vontade dos outros (o “espero acabar o meu trabalho” ou “ir de férias”, implica que não morrerei até lá e que os outros não vão interromper a minha existência). Sem este voto de confiança, sem esta fé, a continuidade da vida e o desenrolar de projectos não é possível. Este voto de esperança é um eco perene da infância.

Embora a nossa experiência empírica nos imponha uma atitude realista ou “estóica” perante a morte, o “Não!” subsiste, plantado na alma humana. Embora estejamos rodeados de morte, que é um constituinte absolutamente necessário ao processo de renovação na natureza, existe uma experiência de esperança, que aponta para o sobrenatural e que faz parte da nossa própria natureza. Nesse sentido, como dizia Chesterton, não é próprio do homem ser apenas natural. A religião é então o último horizonte, a direcção da coragem e da esperança, o terreno da infância e da alegria.


4 – A condenação.


Existem ou não existem práticas que pela sua natureza “bradam aos céus”, i.e., põem em causa a existência do homem e da sociedade como tal, mesmo que as suas causas sejam explicáveis? Os valores morais serão apenas produtos socio-históricos fruto do espaço-tempo? As acções de Eichmann poderão ser vistas com distanciamento científico e apenas consideradas uma questão de gosto? Nenhuma sociedade sobrevive a tal relativismo. Existem monstruosidades perante as quais a reacção se deve basear em valores absolutos e tais valores também radicam na transcendência. A necessidade de salvar uma criança do seu potencial assassino, mesmo que à custa da vida deste último, terá que ser assumido como um valor absoluto se queremos continuar a ser uma sociedade de seres humanos. O elemento transcendente manifesta-se para além da possibilidade e da justificação do acto. A sua natureza revela-se na medida em que a nossa condenação é segura, absoluta e universal. É uma verdade necessária e universal. Mas a sua demonstração empírica como necessária e universal não pode ser feita. Então temos duas alternativas: ou negamos que exista aqui algo a que possamos chamar, sem qualquer sombra de dúvida, verdade, o que coloca em causa a própria vivência do nosso ser, ou então temos que admitir existir aqui algo para além do limiar natural para validar a nossa certeza.


Pode mesmo dizer-se que existe uma gradação de condenação. “Enforcá-lo não chega!”; então o que é que chega? Nada chega! Existem actos que impõem à mente humana não apenas a condenação mas também a proscrição, a expulsão da comunidade dos homens que partilham um património moral. Esta antecipação do inferno, este crime hediondo para o qual não existe castigo adequado, também nos revela a transcendência imanente neste nosso mundo, esta fé indutiva. A esperança e a condenação são extremos da mesma régua. A esperança religiosa oferece uma teodiceia e por conseguinte, consolação às vítimas; mas é igualmente certo que a proscrição separa os que perpetram a desumanidade, mesmo que em nome do humanismo e do progresso. Assim, pelos nossos próprios recursos, inferimos a necessidade da existência do Céu e do Inferno, apenas como resultantes do nosso juízo moral.


5 – O humor.


É a constatação da discrepância ou incongruência entre duas realidades sobrepostas. Associada sempre a situações humanas ou pelo menos antropomórficas em que existem pelo menos dois significados discrepantes envolvidos. Ela reflecte a discrepância entre o ser humano e o universo, entre a alma e o mundo. Ele espelha a radicalidade comum da comédia, drama e tragédia. Até a grande tragédia possui sempre um elemento cómico ou ridículo. O humor goza com os poderosos deste mundo e com as suas regras. O poder é sempre transitório e o homem poderoso é demasiado humano. O poder é a última ilusão. A risada é a percepção deste paradoxo. O humor é a libertação desse encarceramento do espírito humano, revelando que tal encarceramento é transitório. É um êxtase, ek-stasis, colocar-se fora do comum da vida diária. A comédia é uma literatura responsável porque ela é um prenúncio da última verdade: o palhaço faz mais auto-crítica do que o humanista e ter sentido de humor é sempre mais sadio do que deificar a humanidade.



A fé e a teodiceia religiosa parece mais conforme à natureza humana. Mesmo que em terreno meramente da sanidade mental, o teísmo passa na prova frente ao ateísmo. Nenhuma consolação é tão plena como aquela que existe no teísmo, o que indica que o ser humano lhe é conforme. Creio que era a isso que Chesterton se referia quando dizia que a Igreja Católica é o lar natural do espírito humano ou que os católicos circulam na escuridão assinalados pela cruz de Cristo. O ateísmo marxista tem um problema com a humildade, com a alegria e com a consolação. Talvez por isso seja comum a agressividade e o desdém. Mas lembra aos crentes que a fé é uma dádiva, um encontro, em que é muito provável que o outro lado tenha percorrido o maior caminho.





António Campos

Nota: Este texto é em grande medida uma sinopse do livro "A Rumor of Angels" do teólogo judeu e protestante, Peter Berger, Professor de Sociologia na New York New School for Social Research, 1969.

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