domingo, 9 de agosto de 2015

Socialismo, Uma Religião Determinista - I





Devo dizer que existem características na comuna que sempre me fizeram pensar numa religião: a
exaltação nas canções, o zelo e entrega na acção, a focalização de todo o ser apenas em um sector da vida, uma embriaguez que se assemelha a uma possessão, o proselitismo, uma comunidade onde o crente se revê, uma moral, uma escatologia, uma crença (no progresso, no determinismo), o abismo da superstição, uma atitude “espiritual”. Lenine dizia mesmo que o socialismo era uma religião; Chesterton num dos seus menos conhecidos mas mais ilustrativos paradoxos afirmou uma vez na rádio que Middleton Murry, um escritor socialista, nos bradava das trevas: “Não existe Deus e Marx é o seu profeta!”1


Numa frase sem sentido para aqueles que não conhecem outro Deus que não o da teologia, trata-se de negar esse Deus da teologia e de afirmar o Deus da experiência. A necessidade de um padrão comum e de uma fonte para a acção que, contrariamente ao que dizia Kant, não pode residir em cada homem como legislador, mas numa fonte “metafísica”, mesmo que metafísica possa significar uma abstracção como “Humanidade”, “Estado”, “Partido” ou “Proletariado”.

T. S. Eliot dizia que o ethos do povo a governar determina o comportamento dos políticos, mas todos sabem que o que acontece nos países comunistas é que o único ethos que interessa é o do partido único.

Onde essa religião seria menos consistente seria na teodiceia, no seu “theos”, na escatologia e no problema da caridade. A teodiceia seria mais tarde resolvida por Sartre (“o Inferno são os outros”); acabados “os outros” chegaríamos do socialismo ao comunismo (o paraíso). O theos seria resolvido pela idolatria do Estado; o grande líder e os seus sequazes seriam os camaradas icónicos, os “grandes intérpretes” da História. A resposta à morte seria a crença de estar a ser obreiro na construção do paraíso e a deposição das cinzas (um eco da filosofia oriental e um corte com a ligação à matéria). A caridade substituída pela filantropia (do Estado). A atitude “espiritual” é a soberba, o orgulho da superioridade intelectual, artística e cognitiva, a mola na dialética da acção.

A humildade recua completamente da acção política.2

Toda a tese do socialismo como religião fundamenta-se no determinismo que o impregna. Para Chesterton, o socialismo é filho do capitalismo, que por sua vez é filho da mente calvinista, como afirmaram Max Weber e outros:3,4,5 “Aquele que é diligente nos seus negócios comparecerá perante os reis.”6,7

“O burguês que despreza o socialismo e o socialista que despreza o cristianismo não são opostos: são o mesmo tipo de pessoa. Têm ambos os mesmos erros: orgulho e vã-glória, cegueira e coração de pedra.”8

“A minha objecção fundamental ao comunismo é que ele aceita ser o herdeiro do capitalismo. O seu infeliz determinismo estreita os horizontes da política. Contenta-se em dizer que tudo se reduz a Um Homem, que está inchado e dorido por todo o lado. Todos estamos amarrados pelo pescoço e pelos tornozelos de modo que compomos uma figura grotesca de um ogre gigantesco. Mas eu não gosto de ogres; eu quero seccionar o ogre. Eu sou mais revolucionário que o Sr. Middleton Murry. Não creio que este monstro aberrante cause menos dor apenas por se autodenominar comunista. Eu sou mais céptico que o Sr. Murry. Eu recuso essa aberração de Um Homem e quero fragmentá-lo de volta em muitos homens."9


“O mesmo individualismo industrial, urbano e cosmopolita que não possui outro pensamento que não a propriedade privada produziu um novo mundo em que não se pensa em propriedade privada, ou pelo menos, nunca primariamente como privada.”10


Ligada a esta ética calvinista e puritana encontra-se um tipo de caridade institucional, chamada filantropia (etimologicamente, amor pela humanidade). No evangelho da riqueza encontra-se a ideia da predestinação ligada ao sucesso económico e financeiro. Efectuar dádivas públicas seria assim demonstrar publicamente que se é um predestinado e por outro lado exercer a única ostentação de riqueza permitida pelos rigorosos puritanos. No entanto, desrespeita as palavras de Cristo: “não saiba a tua mão esquerda o que dá a tua direita";11 aliás todo o capítulo 6 de Mateus é muito explícito quanto à filantropia. O socialismo seria assim a suprema filantropia, a filantropia de Estado.


Em ambos os sistemas, capitalista e comunista, existe uma repercussão na propriedade e consequências na liberdade individual, mais dramáticas no sistema socialista: “Eu discordo do comunismo porque creio que ele envolve o sacrifício da Liberdade. E curiosamente homens como Middleton Murry também o admitem. Estamos de acordo. Claro que ele adiciona o paradoxo místico de perder a liberdade de forma a ser livre, mas isso é algo que cabe a ele explicar.”12







Caridade e Liberdade



Só a caridade produz liberdade, ao dar independência àquele que recebe a dádiva. Por outro lado, a caridade assenta em pressupostos: todos os homens são irmãos, existe uma filiação comum, existe uma lei universal de caridade (se um homem te pede um pão não lhe dás uma pedra). Assim, caridade não se reduz a esmola; ela supõe ajudar alguém que não está em condições de retribuir (salvar um homem que se afoga, dar uma informação na rua, ensinar um desempenho) – deste modo o homem faz o gesto de Deus. A caridade baseia-se no Outro, na complementaridade e na diferença.


“É suposto que a caridade torne um homem dependente, embora na realidade o torne independente, comparativamente com a triste dependência produzida pela Organização. A caridade confere propriedade e, portanto, liberdade. Existe mais emancipação em dar dinheiro a um mendigo do que em encarregar um funcionário de lho gastar por ele.”13


“Dar, apenas pode ser considerado errado pelos economistas. (…) Toda esta filosofia duvidosa sobre ser errado dar ajuda pronta e pessoal a alguém que necessita, surgiu há quase um século quando as pessoas acreditavam na “ciência” e nas chaves da ciência para a vida social. (…) Por que razão deve um homem doar cinco xelins para a secretária de uma sociedade, em vez de os doar a um pai de família que pede ajuda? Ele vê o pobre; ele nunca viu a secretária.”14


Pelo contrário, a filantropia consiste não em ser bom mas em praticar o bem. Significa dar um pouco daquilo que sobra; dar e não dar-se. Nas palavras do Papa, "desconfio muito da esmola que não dói." Ela tem uma base filosófica e uma base religiosa. A base religiosa como vimos é um misto de calvinismo e puritanismo. A base filosófica tem raiz em Kant (“a acção em si não tem toda a força de um modelo e de um impulso para a imitação”), que por sua vez tem origem religiosa na Reforma (desvalorização do valor das obras) e em Hegel para quem tudo o que é particular é uma abstracção, uma aparência fugaz e transitória do “espírito”. A sua base filosófica é tratar a humanidade como um organismo (uma abstracção do intelecto), é construir um sistema racional e não emocional, em ser uma organização para a qual resolver os problemas de uma única pessoa não tem qualquer valor. Este tipo de misoginia foi personificado por Dostoiévski em “Os Irmãos Karamazov” e por Dickens em “Conto de Uma Noite de Natal”.



É uma atitude semelhante a quem faz acções humanitárias para as usar para se auto-publicitar, para reduzir os impostos a pagar ou para colocar no curriculum e assim superar os colegas na carreira profissional. A filantropia alimenta os funcionários da organização e coloca sempre o necessitado na dependência da organização e entregue ao seu arbítrio.



“Os bolchevistas dizem que querem eliminar a burguesia; eu pelo contrário quero eliminar o proletariado. O que está errado não é existir uma classe proprietária; o que é errado é existir uma classe sem propriedade. O que é errado é que uma classe dependa inteiramente de ter que ser contratada para sobreviver. Ou seja, que seja proletária. O ideal é que fosse eliminada. A aproximação ao ideal é que seja eliminada tanto quanto for possível. O que tem que ser eliminado não é a propriedade, é o proletariado.”15


“Cristo não amava a humanidade. Ele nunca disse que amava a humanidade. Ele amava os homens. Ninguém pode amar a humanidade, pois seria como amar uma gigantesca centopeia.”16


“No materialismo político dos nossos dias, existe a convicção de que podemos fazer o bem a alguém desconhecendo completamente a sua circunstância ou as suas virtudes. Sem conhecer o mérito e a circunstância de um homem, nem sequer o conseguimos magoar.”17


 “A democracia não é filantropia; nem sequer é altruísmo ou reforma social. A democracia não radica em ter pena do homem comum; a democracia radica na reverência para com o homem comum. Não exalta o homem por ser muito miserável mas por ser sublime.”18






A Família e o Estado



O socialismo como um sistema que é uma construção intelectual, uma abstracção, que assenta a sua base numa pretensão de igualdade com o sacrifício da liberdade, dificilmente deixaria de provocar repercussões na organização humana celular básica, onde essencialmente reside a diferença e onde o homem primeiro forma a sua consciência política: a família. Aqui, o homem molda e é moldado pela diferença omnipresente no exercício da liberdade e do dever. O socialismo como colectivismo tem muita dificuldade em separar a esfera pública da esfera privada. A família é vista com o olhar de Platão em A República, em que as mulheres deviam desempenhar o mesmo papel dos homens e as crianças criadas em creches institucionais. 

O valor da igualdade é basicamente uma heresia do valor cristão de filiação comum. Perdida a paternidade universal, resta a visão de orfanato – a humanidade é um organismo. O sociólogo na ânsia de reformar, em nome da família torna-se o seu assassino.


“Quando se fala da relação entre o homem e a mulher, as palavras são cuidadosamente escolhidas para sugerir que a relação não possui alma. Em vez de se falar de amor e paixão, fala-se de propósito e desejo. Falam das relações entre sexos como se eles se relacionassem mecanicamente, como uma cadeira e uma mesa.”19


Os sociólogos opõem-se à família exactamente pela sua diversidade, pelo modo como desafia a uniformidade. O homem e a mulher são iguais precisamente porque são inteiramente diferentes na sua função e propósito:

“O nosso Deus fez dois amantes num jardim,
Dois polos separados e libertados
Os seus dois pares de olhos sedentos de deslumbramento de ira e de perdão,
E os seus beijos trovejam, como se fossem lábios de areia e de mar;
Num êxtase infindável perante o outro,
Dois universos cintilantes de incógnitos deuses em batalha…”20


“Estas mentes básicas, intelectuais e burguesas, nunca compreenderão a diferença entre a separação criativa de Adão e Eva e a separação destrutiva de Caim e Abel.”21




O homem e a mulher são, por conseguinte, dois mundos diferentes, habitando na mesma casa, combinando distância e intimidade. No socialismo, tal como no capitalismo, existe a convicção de que a competição e não a complementaridade é que conduz a sociedade “rumo ao melhor”. O sexo seria assim dialético e o amor uma abstracção. 

“Nenhum tirano pretende agradar aos seus escravos e poucos escravos amam quem os tiraniza. Por isso mesmo, a relação entre um homem e uma mulher não é uma relação senhor-escravo. (…) O casamento não é um martelo mas um íman. A família não se baseia em força, mas em atração entre a diferença. As atitudes mais antigas entre os sexos são convenientes: não impostas por um dos lados, mas igualmente desejadas por ambos. Por exemplo a beleza do corpo da mulher e a força física do homem. Nunca foram impostas; são antigas e inteiramente livres.”8





A diferença de mentalidade e comportamento teria sido aprendido por influência do passado. Curiosamente, neste sentido, as diferenças de comportamento sexual entre os animais já não teriam interesse para o homem…A aprendizagem social teria que ser eliminada, os instintos tratados e colocados à solta pela eliminação da culpa, “esse conceito judaico-cristão”. Bentham e Marx, a fábrica e a comuna, a sociedade exclusivamente económica, teriam obrigatoriamente que conduzir a Freud e Jung, o sexo exclusivamente subconsciente. Por isso mesmo, Chesterton afirma que o sexo na actualidade não está a ser sobrestimado mas subestimado, toda a sua complexidade amarrotada num pequeno compartimento.


“Não tornem isto apenas sexo, este outro lado das coisas*
Essa coisa menos profunda** do que a ânsia do mundo*.
Ele tem a cor do pôr-do-sol,
Grita-nos ao longe pelo compromisso, e que chama
Caída para além do sol, impossível de procurar,
Deixemos que nos separe pelo nosso futuro;
Como um sinal longínquo da nossa linguagem secreta
Para pendurarmos o altivo horizonte na nossa casa.”

(NT: *amor e **sexo)





António Campos



1https://books.google.pt/books?id=oaaOxxF4XFcC&pg=PA148&lpg=PA148&dq=chesterton+middleton+murry+there+is+no+God+and+Marx+is+his+prophet&source=bl&ots=AFv_XEmSt-&sig=Ma-kiN-oEYXk3AVfNxnCswUUXbk&hl=pt-PT&sa=X&ved=0CB0Q6AEwAGoVChMIvIfJjuP5xgIVwbsUCh2Eig6L#v=onepage&q=chesterton%20middleton%20murry%20there%20is%20no%20God%20and%20Marx%20is%20his%20prophet&f=false


2 Chesterton, A Defense of Humility, The Speaker, 13 de Abril de 1901.

3 Max Weber, A ética protestante e o "espírito" do capitalismo, 1904-1905.

4 Ellen Meiksins Wood, The Origin of Capitalism, 1999.

6 Prov 22:29.

8 The Naming of Children, Illustrated London News, 29 de Abril de 1911.

9 On Necessity  and Miracles in History, Illustrated London News, 4 de Junho de 1932.

10 On Education, All I Survey.

11 Mt 6:3.

12 The Dangers of Extreme Thinking, Illustrated London News, 20 de Janeiro de 1912.

13 Irish Impressions, 1919.

14 What is a beggar? Illustrated London News, 25 de Fevereiro de 1911.

15 Eliminar a Classe Sem Propriedade, Illustrating London News, 8 de Novembro de 1924.

16 Doze Tipos.

17 (op cit.).

18 Hereges.

19 O Socialismo e as Nações. Illustrated London News, 7 de Dezembro de 1912.

20 Wedding in War-time, Collected Poems.


21 The Outline of Sanity.

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