domingo, 5 de abril de 2015

UMA APROXIMAÇÃO A CHESTERTON (parte II)


 
Nesta nossa pequena introdução a Chesterton, insistimos um pouco na duração denominada Idade Média, pois ela mereceu uma substancial atenção por parte do autor inglês. Não poderia ser de outra maneira: além de mal estudada pelos teóricos e desconhecida pelo público em geral, a época era (é ainda) vítima de boatos e vitupérios generalizados, lendas negras e preconceitos intoleráveis, enquanto se foi tornando ao longo do tempo objeto de um acervo histórico sem qualquer ajuste nem integridade: a idade das trevas. Nenhuma outra época é tratada de semelhante forma por profissionais e amadores da História e do Pensamento.

O nosso autor reconhecia que escalpelizar os séculos em que o cristianismo surge e em que acaba por se afirmar, era imprescindível para o leitor interessado poder reter uma perspetiva reta, equilibrada e verdadeiramente equidistante do conjunto. Reencaminhar a sociedade para essa era remota ou desejar imbuir nos espíritos seus conterrâneos o seu perfume e carisma particulares, não foi o ofício a que se impôs. Estava longe de ser um romântico revivalista. Não era de todo um pré-rafaelita. O seu foco foi sempre o presente, a sua única real preocupação foi o seu quotidiano – a situação da sua Inglaterra e do mundo. O trabalho de arqueologia (uma espécie muito sui generis de “arqueologia do saber”) que levou a cabo, obedeceu a uma necessidade lógica e operativa: dar a conhecer a realidade sentida e vivida nos primeiros séculos cristãos. Em vez de oferecer um inventário cronológico ou de enveredar por uma desconstrução polemista, preocupou-se em apresentar uma fenomenologia histórica. Nesse enquadramento, é lícito apelidar a sociedade medieva como um corpo místico.

 

É extremamente difícil para nós - concedo sem qualquer azedume ou estranheza - conceber sequer uma aproximação honesta a tal conceito social e comunal. Estamos muito arredados e completamente alheados desse espírito de proteção e do dever (já o dissemos). Porém, não há escapatória para um ser humano humilde e honesto, homem ou mulher sério e de mente aberta, para o cidadão coerente contemporâneo que deambula pelas ruas apinhadas e confusas das nossas cidades individualistas. Apresenta-se como a única alternativa possível para olhar a época de relance sem preconceitos de qualquer origem. Só desta forma poderemos entender o acontecimento místico das Cruzadas.

Sem dúvida alguma, Chesterton dominava muito bem os heréticos seus contemporâneos. Já anteriormente os referimos. (Especial atenção tiveram os socialistas fabianos George Bernard Shaw e H. G. Wells e os calvinistas). Além das obras Ortodoxia, Heréticos, O Homem Eterno, de salientar duas autênticas obras-primas no campo da biografia e da hagiografia: São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. Através do estudo da vida destes dois santos, cada um com histórias de vida e características pessoais nos antípodas do outro, o nosso escritor conseguiu demonstrar a riqueza e a grandiosidade do catolicismo: Deus aprecia a diversidade e como tal, escolhe os aparentemente incompatíveis polo sul e equador para o demonstrar inequivocamente: envia um boi mudo da Sicília e o primeiro sitgmata para colorir a face da terra. O lado literato e o lado romanesco da vida. Nenhum complementa o outro, nenhum obscurece o outro: trabalham ambos para a mesma Obra; são ambos servos do mesmo Senhor, contribuindo com virtudes e qualidades diversas. Um moderado e um apaixonado de mãos atadas à Palavra de Deus. Jamais se contradisseram, e sem nunca se terem cruzado nesta vida, concordaram em tudo o que é fundamental.

 

Assim é na vida de todos os santos: como humanos, são únicos e irrepetíveis, como cristãos, são exemplares, todos convergindo para o mesmo centro. Mas nessa inconsciente convergência, desferem, quantas vezes inocentemente, inexoráveis golpes profundos nas teses dos inimigos da humanidade. Pois para um cristão, um inimigo de Deus é um oponente sério e perigoso da humanidade. Representa o mais grave atentado contra ela. As heresias e os heréticos, antigos e modernos, que Chesterton aborda ao longo da sua vida e obra, têm essa vil duplicidade. Prejudicam o Homem e desrespeitam Deus.

 


 

Talvez nem seja necessário ir ao fundo da questão. Analisemos a leitura chestertoniana sobre determinado e determinante fenómeno. Durante décadas, o simples e anónimo cidadão romano convivia com uma estranha ideia na cabeça: é preciso destruir Cartago – delenda est Carthago. Existia alguma coisa de mórbido com aqueles fenícios, qualquer coisa quase de inominável. De modo que não bastaria conquistar, explorar ou capturar – era imperativo aniquilar. Inclusivamente no Senado, tornou-se prática corrente muitos oradores finalizarem os seus discursos com esse estribilho, parecendo querer assegurar que permaneceria intacto através dos tempos para ser devidamente decifrado pelos vindouros. Como uma marca ou sinal de eminente perigo. Tivessem sido melhor instruídos ou mais esclarecidos, os simples homens rurais da república saberiam denominar o mal - Baal/Moloque.
 
Esse pérfido deus dos cartaginenses alimentava-se de crianças e de auto-mutilações adultas. Enquanto o pacato agricultor romano orava aos seus deuses domésticos feitos de barro, oferecendo pequenos sacrifícios animais e acendendo algumas velas, no outro lado do Mediterrâneo, a poucas milhas da Sicília, matavam-se impiedosamente milhares de crianças. O célebre Aníbal, o tresloucado cartaginês que levou dezenas de elefantes a percorrer meio continente europeu e a atravessar os Alpes, que dizimou à fome e ao frio os seus correligionários antes de poder ter à disposição a vida dos seus inimigos latinos, quantos infantis não terá sacrificado ao pérfido deus antes do seu monumental exército se ter feito ao caminho? Que quantidade de sangue inocente derramado terá sido adequado para uma empresa desse calibre? Baal certamente não ficaria satisfeito com pouco. (Séculos mais tarde, no outro lado do Atlântico, os europeus iriam assistir a indescritíveis espetáculos semelhantes).

 

A Roma pagã – e não somente os Cipiões - não descansou enquanto não destruiu essa maldita cidade-estado, adepta sinistra de um paganismo pérfido e cruel, arrasando-a até aos alicerces, e no fim - numa ação bem mais elevada do que um mero ritual, num efeito bem mais que simbólico -, para que nada de semelhante pudesse voltar ali a despontar, salgou o chão – e Cartago nunca voltou a erguer-se. Tratou-se de um caso único na política de expansão romana. Em vez de aumentar o seu território, em vez de aproveitar as imensas riquezas e infraestruturas da poderosa cidade, em vez de jogar a cartada diplomática em que era mestre, a república romana optou conscientemente pela total e irreversível aniquilação. Há paganismo e há paganismo – é imperativo proceder à aceção de superstições.

 

Na sua interessantíssima aportação ao acontecimento Abraão-Isaac, Chesterton insiste no escândalo que reveste a ordem de Deus: o pai oferecer em sacrifício o seu próprio (e único) filho. Por se tratar verdadeiramente de um escândalo (escândalo em sentido bíblico) é que o episódio assume uma importância decisiva e elucidativa. Efetivamente, se se tratasse de um ato comum entre os judeus - de resto, ordinário entre vários povos pagãos - o imperativo divino não revestiria o carácter exclusivista do insólito para o povo hebraico. A verdade é que Deus não permitiu. Em vez de Isaac, Abraão apenas terá de oferecer em holocausto um animal, prática que se manterá dentro dos desígnios divinos até à proclamação da Nova Aliança.

 

Jesus, no exorcismo ao geraseno, não hesita em aceder ao pedido do demónio Legião, permitindo que ele possua a horda de porcos, que de resto, logo se precipita no mar. Afinal, as aves do céu não semeiam nem colhem, não dispõem de celeiros, mas mesmo assim Deus as alimenta – e não somos nós, homens e mulheres, muito mais que as aves? É a mesma conceção de São Francisco quando canta a beleza dos animais e da natureza: o Cântico das Criaturas. Está completamente arredado de qualquer paganismo ou naturalismo, pois filtrado pela visão de Deus. Como sempre acontece com todo o paganismo e com todo o naturalismo, a ligação direta e a submissão passiva à natureza acaba por resultar em algo que é contranatura. Assim com os gregos, com os cartaginenses, e em menor grau, com os romanos. A estrita observância do natural em nós, além de rebaixar-nos ao nível da abjeta bestialidade, é um impedimento de aceder ao sobrenatural – a Deus. A conexão e a promiscuidade com a natureza amesquinha-nos ao ponto de não sermos nada mais que lama. O corte é profundo, acabando por ser uma fronteira dimensional, em que o Homem se vê afastado do Senhor e a sua alma conspurcada.

 

Foi precisamente esse o trabalho de sapa da Idade Média: após séculos de paganismo desenfreado, a Igreja viu-se forçada a equilibrar o homem e a sua conduta, ao mesmo tempo que procedia a uma separação entre o trigo e o joio. A torre da catedral gótica teve que romper a basílica clássica pagã. Nada se perdeu, e como tudo se transformou! Até que São Francisco pudesse cantar hinos fulgurantes à irmã natureza, até que Petrarca pudesse surgir em todo o esplendor literário, foi um longo percurso que teve de ser trilhado. Atentemos nas palavras de Etienne Gilson, fazendo um paralelo entre Santo Agostinho e o poeta de Arezzo: “ele escrevia em latim melhor do que o próprio Petrarca, logo Petrarca só podia respeitá-lo; era um santo, logo Petrarca podia confiar-lhe o cuidado de sua alma; esse santo sofrera as mesmas desordens de costumes que Petrarca, logo podia compreender Petrarca; ele se curara, logo podia curar Petrarca”, e “podia-se ser cristão, e sê-lo até a santidade mais sublime, sem se crer obrigado a desertar os clássicos”. O Bispo de Hipona significou para Petrarca a possibilidade do convívio pacífico e frutífero entre os grandes autores pagãos e o cristianismo; que havia uma ponte entre Cícero e Santo Ambrósio.

 

Em abono de Chesterton e em detrimento de Foucault, podemos inferir que a sua obra não pertence ao seu tempo - ou a qualquer outro: ela é eterna. Nela, o inglês defende, disponibiliza, analisa e reergue o que designa por Filosofia Cristã, que mais não é – e é muito, ou melhor, é tudo! – do que o catecismo e a tradição católicas. Tal como o Concílio Vaticano II, não erige nenhum novo dogma, não traz qualquer novidade metafísica ou ontológica, não propõe um recente e brilhante princípio filosófico ou teológico: simplesmente remete a mensagem dos evangelhos – a Eterna Revolução - para os condicionalismos com que diariamente se convivia em Inglaterra, na Europa e no mundo.

 

Como bom católico, Chesterton participou ativamente na obra da Igreja – e desse modo, cumpriu a vontade de Deus. Acusar este pensamento de ser apropriado apenas para velhos e para indivíduos quadrados é um erro indesculpável em matéria de geometria e uma notória falta de preparação, quanto mais não seja, em ciência política. É confundir Euclides com César. Além de demonstrar uma total e completa ignorância sobre aspetos característicos do conservadorismo, acrescenta a uma longa lista de ignorância teológica e filosófica, um preconceito contra os idosos que não podemos deixar de lamentar e reprovar. Além de ser contraproducente para os proponentes da tese: a velhos iremos chegar todos (– com a saúde de Deus). Para quê estar antecipadamente a dar tiros nos pés?

 

 

 

Paulo Pinto

2015

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