sábado, 28 de março de 2015

Voltaire e o meu Pai


 

Dos passeios pela mão do meu pai, nas tardes de sábado de mãe ausente, guardo o cheiro a mar e a
flor, o vôo de gaivotas, o marejar de cacilheiros e a luz do Império. E os conselhos do meu melhor amigo: “António, a inteligência é coisa boa, mas pode perder um homem. É precisamente quando nos convencemos que somos melhores que nos tornamos piores.” Voltaire torna-me órfão de pai, do meu pai que me ama e que comigo sofre e propõe-me o ateísmo ou o deísmo. Num caso nasço num caixote do Pigalle, perdido entre os outros seres e substâncias, no outro sou produto de um albergue espanhol. Enquanto a minoria de ateus me obriga a perseguir a autenticidade da minha fé, esmerilando-a, a seita iluminada dos deístas, no esforço de argumentos científicos ou filosóficos, oferece-me um deus-mito, mera construção da imaginação humana, absolutamente indiferente a mim, insensível à minha sorte.

Não quero semelhante deus. O deus do Gott mit uns ou do In God we trust. Um deus-logos dos filósofos, chorando sobre a sorte dos homens sem nela poder intervir. Para um deus assim, antes ser ateu. Que me interessa conhecer um pai desconhecido que me abandonou à minha sorte, insensível ao meu sofrimento? Que redenção, que conforto esperar de um ser assim, com coração de pedra? A um ser assim indiferente, também eu lhe sou indiferente. Se existe uma seita que afirma um pai que sempre me ajuda e comigo sofre, então vale a pena procurar esse pai. Se ele não existir, a discussão reduz-se a uma questão filosófica, mas se ele existir trata-se de um drama humano e sobre-humano. Deixo de estar perante um mito, uma fabricação artística, para entrar num outro universo, ainda que sobreposto com este, mas cuja verdadeira natureza apenas poderei vislumbrar de forma alegórica. Se perder, pouco tenho a perder; se ganhar, é a aposta de um milhão de dólares.

Dizia Chesterton: “Não se pode ignorar o tópico de Deus. Quer se fale de porcos ou do binómio de Newton, ainda se está a falar Dele. Se o cristianismo for uma construção absurda, inventada por uma seita, defendê-lo apenas pode significar  falar vezes sem conta sobre um absurdo metafísico. Mas se porventura o cristianismo for verdadeiro, então defendê-lo tem que significar que ele está presente quando se fala quer de um assunto específico quer de um assunto geral. A discussão é irrelevante se o cristianismo for falso, mas nada é irrelevante se o cristianismo for verdadeiro.”

 

 

Eu quero procurar um Deus que seja comigo ateu. Pelo menos relativamente a todos os deísmos e a todos os mitos ou demonstrações. “Um Deus que tenha estado em revolta; uma divindade que conheça a solidão; um Deus que pareça, por um momento, ter-se tornado ateu.” Um Deus separado de mim e que garanta a minha liberdade, mesmo à custa do meu sofrimento. Eu quero procurar esse Deus laico, liberto de todas as magias da Antiguidade. Eu quero procurar esse Deus humano, que caminha para o futuro e não a serpente que morde a própria cauda, num eterno retorno. Eu só entendo o mal conhecendo o Deus que sofre. Se Deus não sofrer, ele é um sádico e não se espera nele liberdade nenhuma.

 


 

 O Erro de Voltaire

 

Voltaire é apenas humano, demasiado humano, como diria Nietzsche, nos seus erros e contradições. Ele vê a religião cristã como um mito construído à medida do homem. Mas, como acreditar no Deus de Voltaire, se o homem constrói um mito muito melhor e mais generoso do que ele? Como é que o ser idiota constrói um mito muito mais perfeito do que o Ser Supremo? Esta é uma contradição insanável do deísmo. Mas Voltaire incorre num outro erro de julgamento: ele julga o cristianismo com olhos demasiado cristãos. Na verdade, o cristianismo iniciou-se no seio do judaísmo. Cristo era judeu, tal como os apóstolos e os primeiros fiéis. Só após Paulo é que o evangelho é pregado de forma sistemática aos gentios. Para avaliarmos o cristianismo nascente, a sua essência, temos que o observar com olhos judaicos. A esta luz, o cristianismo não é um mito, é uma heresia.

 

Heresia e Blasfémia

 

Adorar um homem como Deus, o inefável, Aquele cujo nome impronunciável só possui consoantes, era para um judeu a suprema abominação. A maioria dos messias que ocorreram no seio judaico era não só mais importante do que Cristo, mas nenhum deles jamais pensou em se equiparar ao próprio Javé. Além de que com nenhum deles a História se partiu ao meio, em antes e depois, mesmo no meio judaico: após o ano 70 foram abolidos o sacrifício e o sacerdócio para sempre e Israel deixou de acreditar num messias humano e passou a acreditar num messias-povo; Israel só voltaria à Palestina em 14 de Maio de 1948. A sobrevivência do obscuro messias ressoa as palavras de Gamaliel, membro do Sinédrio sobre os discípulos de um messias supostamente ressuscitado: “Deixai esses homens e ponde-os em liberdade: porque se este desígnio ou esta obra vem dos homens, há-de dissolver-se; mas se vem de Deus, não podereis dissolvê-la.” No entanto, em quarenta séculos de vida religiosa de Israel, Jesus é o único hebreu a quem os hebreus um dia adoraram.

 


Um Mito da Pior Qualidade

Mas a blasfémia não ficava por aqui. Um israelita que dissesse “bebei o meu sangue” quebrava um dos tabus mais importantes do judaísmo: o da abstenção do sangue!

E como é que os discípulos continuaram a acreditar num messias cuja esperada vinda não se concretizou? Como compreender que o cristianismo seja o produto de um bando de iletrados que escreveram em mau grego para propagandear uma fé blasfema? E o que dizer de uma genealogia de um messias que incluía quatro mulheres? Para os hebreus a mulher não contava nas genealogias. Tamar prostituiu-se com o sogro; Raab era prostituta; Ruth era pagã e ofereceu-se a Booz; Betsabé era a adúltera mulher de Urias. Ninguém inventaria uma genealogia assim. Para já não falar na total ausência de descrição física ou aptidão escolar do herói. Na verdade nem se sabe se sabia escrever, apenas que sabia ler. Tudo o que escreveu foram uns garatujos no chão. Ora, na mentalidade judaica, só a cultura confere autoridade. Um messias que não pertence à tribo de Levi, a estirpe sacerdotal, e cujo nome é dos mais comuns em Israel. Em todas as mitologias o herói tem não só um nome único mas também solene.

 

Uma mensagem insuportável

 

E quanto à qualidade dos seguidores? Uns tipos de carácter tão fraco que nem conseguiram vigiar com ele uma hora, que fugiram perante o perigo, acovardados, que o deixaram morrer no abandono e na solidão completa! Repreendidos severamente por diversas vezes por não terem entendido o significado da mensagem, apresentam-se sem fé, embora exijam dos outros a fé. É impossível pior carta de recomendação. Como é que se pode confiar em gente assim? Como é que inventaram uma história tão bizarra destinada ao fracasso? A primeira aparição de Cristo foi perante o pior tipo de testemunha: as mulheres.1 Ninguém em Israel lhes dava crédito. E o que dizer da afirmação de que não é fundamental sepultar os mortos ou abandonar a família, dois preceitos interditos na lei judaica? Aliás, este messias dá notícias pelos 12 anos porque fugiu da família e deixou preocupadíssimos os seus pais durante dois dias, deixando uma pobre imagem da obediência filial e da capacidade de tutela dos seus pais. E quanto à afirmação de que o Reino dos Céus é das crianças, que não eram consideradas pessoas na Antiguidade?2

Falta mencionar a “invenção” da cruz. Uma invenção tão “popular” entre estes mitólogos que eles se recusavam a representá-la visivelmente, tal era o opróbrio a ela associado, não só entre os romanos mas também entre os judeus: “O suspenso num poste é objecto da maldição de Deus”, Dt 21.

Não será mais inteligente afirmar que os pobres discípulos, homens comuns, foram fiéis depositários e nomeados propagandistas de uma mensagem impossível? Uma mensagem se não indesejada pelo menos indesejável? Que as consequências que muitos sofreram, não apenas em Israel, como Estêvão, mas em todo o Império Romano, seriam facilmente previsíveis? Como se deixa sacrificar alguém até à morte por uma mensagem que sabe ser falsa, que não lhe traz nenhum proveito material e que lança a si e à sua família na maior ignomínia? Acreditar nesta bizarria como o fazem ateus e deístas requere realmente muita fé! Dir-se-ia que requere pessoas muito crédulas.

 

 

 
O Testemunho da História

 

Mas Voltaire até admitia que semelhante mestre não existiu. Como explicar então esta labareda da História sem o fósforo que a acendeu? Não é este um desrespeito do princípio da causalidade, um sistema solar com ausência do sol?

Outra versão é que os livros foram adulterados ou inventados ab initio, muitos anos após os supostos acontecimentos. Mas os primeiros livros foram escritos com milhares de testemunhas oculares ainda vivas. O evangelho da Marcos é anterior ao ano 70, i.e., anterior à destruição de Jerusalém, e nele é descrito como o processo de divinização de Cristo está completo. A Primeira Carta de Paulo aos Coríntios anterior ao ano 57 (em que Paulo refere precisamente que Cristo apareceu a mais de 500 irmãos, a maioria dos quais se encontra ainda viva), tal como a carta aos Gálatas. Pelo ano 40, dezassete anos antes de ter sido escrita a carta aos Gálatas, ocorreu o primeiro encontro de Paulo com os chefes da Igreja de Jerusalém. A Primeira Carta de Paulo aos Tessalonicences antes do ano 52 (e nela a reprodução do slogan oral do cristão, o kérygma, encontra-se intacto: “Cristo morreu, foi sepultado e ressuscitou”). O papiro de Rylands prova cientificamente que o evangelho de João é anterior ao ano 125. A construção de um mito, por mais absurdo que pareça, requere muito tempo e não sobrevive à presença de testemunhas oculares entre os prosélitos, que o desmentiriam de pronto. No ano 79 já existia uma casa com símbolos cristãos que foi encontrada em 1939 por baixo das cinzas do Vesúvio. Em 1968 foi descoberta em Cafarnaum a casa de Pedro que existia como “igreja” cristã desde o ano 100.

Os documentos judaicos sobre Jesus não desmentem a historicidade dos evangelhos; apenas os usam como fonte de troça e de desdém. O trecho de Flávio Josefo, citado por Agápio de Hierápolis, segundo a versão presente na Universidade Hebraica de Jerusalém: “Naquela época vivia um sábio chamado Jesus. A sua conduta era boa e era estimado pela sua virtude. Numerosos foram aqueles que, entre judeus e outras nações, se tornaram seus discípulos. Pilatos condenou-o a ser crucificado e a morrer. Mas aqueles que se tinham tornado seus discípulos não deixaram de seguir o seu ensinamento. Eles contaram que lhes aparecera três dias depois da sua crucifixão e que estava vivo. Talvez ele fosse o Messias de quem os profetas contaram tantas maravilhas.”

 

De facto, não só nenhum outro líder religioso se igualou a Deus, como nenhum outro foi pré-anunciado nas escrituras com dois mil anos de antecedência. Estes dois factos deveriam bastar para que os soberbos entendessem que as religiões não são todas iguais.

 

 

 

As Variações nos Testemunhos como sinais de autenticidade

 

Voltaire, como muitos críticos depois dele, pensam ter descoberto as inúmeras variações nas descrições entre evangelhos: sermão da montanha na planície, 42 antepassados de Cristo para Mateus e 56 para Lucas, etc.. Este modo de raciocinar de Voltaire revela a mente burguesa. Pensa ter descoberto alguma coisa. No ano 150 foi escrito na Síria o Evangelho de Pedro, uma tentativa de conciliação entre os 4 evangelhos, que a Igreja considerou apócrifo. No ano 170, Taciano tentou nova síntese harmoniosa: o Diatéssaron. Marcião pretendeu o mesmo e a Igreja rejeitou este ponto de vista lógico e declarou os marcionitas hereges. Portanto, a contestação à doutrina da Igreja começou muito cedo, o que invalida a hipótese mítica. As discrepâncias entre os Evangelhos já eram conhecidas de todos no século II. É engraçado senhor Voltaire, como é que uma comunidade que tudo teria inventado se recusa a adoptar o último passo da invenção, precisamente aquele que eliminando as contradições tornaria o relato mais credível?

A resposta parece óbvia: porque a Igreja se recusava a tocar em textos que considerava provas testemunhais. Como qualquer relato efectuado por diversas testemunhas, existem sempre pequenas variações à matéria fundamental. Não é por isso que não se levam em conta. Voltaire revelou desconhecer a heresia marcionita, Taciano ou o evangelho apócrifo de Pedro. O seu orgulho levou-o a pensar ter sido o primeiro a descobrir discordâncias nos evangelhos! Não entendeu que a Igreja considerou a prova testemunhal intocável. A Igreja preferiu sempre o apontar para o firme, o mistério pascal, em vez de se preocupar com as famosas discordâncias que tanto divertiam Voltaire e todos os seus enfatuados sucessores, geralmente bem menos brilhantes do que ele. Paulo usa sempre expressões como “testemunhas segundo a carne” e “o meu evangelho obteve a aprovação daqueles que foram testemunhas”. Por vezes nota-se que o escritor do evangelho escreve uma mensagem cujo conteúdo não entende completamente, mas recusa-se a adulterá-la.

Curiosamente, Voltaire e outros críticos, não criticam os cristãos por serem fiéis seguidores de Cristo; pelo contrário, criticam-nos por o não serem bastante. Assim elevam eles próprios a qualidade da mensagem!

 


O Verdadeiro Revolucionário

 

De tudo o que foi dito, não foi Voltaire quem teve um comportamento desviante. Voltaire encarnou a sua época. Foi preso sempre por motivos pessoais, porque tinha uma língua viperina. Cristo foi um enfant terrible, com comportamento desviante. O verdadeiro revolucionário. Atribuiu um valor relativo a muitos preceitos, afirmou que todo o poder terreno está na dependência do demónio, conviveu com prostitutas e valorizou as mulheres e crianças, que não tinham qualquer valor no mundo clássico. Comia, bebia e oferecia a ébrios um bom vinho. Dava-se com mulheres com quem ficava à conversa e comia proximamente com pecadores. Curou uma mulher com a doença mais desprezível: menorragias ou menometrorragias! Tocava em aleijados, leprosos e cegos e recusava o anúncio a uma seita: “Porventura traz-se a lâmpada para se pôr debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não é antes para se colocar sobre o velador?” Foi Cristo quem duvidou, quem chorou, quem rezou, quem vacilou. Foi, como dizia Chesterton, um Deus que por um momento se pode considerar ateu. Foi humano, demasiado humano! Era a sua mensagem e as suas acções que eram sobre-humanas.

Cristo, o verdadeiro revolucionário; Cristo, o Deus alienado. Cristo, o que introduziu um outro valor desconhecido do mundo antigo, “aquele que se exalta será humilhado e aquele que se humilha será exaltado”: a humildade. Ainda hoje a não compreendemos. Humilis tem um significado pejorativo, algo ignóbil; mas Cristo contrapõe ao odioso realismo ou real politik, saída de Maquiavel e ecoada nos salões da Prússia, o regresso ao exemplo dos simples e das crianças. A sabedoria faz-nos voltar à infância, à pobreza da renúncia e do serviço aos outros, não à pobreza da preguiça e do “quero lá saber”.

Russell E. Saltzman, num artigo na First Things, declarava há pouco tempo que escolher o último lugar gera a falsa humildade, a hipocrisia (Prov 25:6-7 e Lu 14: 7-11). Pode ser, se o sujeito em questão ambicionar ser chamado para o primeiro lugar; mas nunca se ele se sentar no último lugar tentando passar despercebido. A religião verdadeira tem sempre um sentido alegórico e este último lugar é uma imagem do esquecer-se de si. É por isso que Cristo continua a história, nesse jantar de sábado. E continua num tom blasfemo, de atrevimento e de desafio: “Na próxima vez convidem os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos.”

Precisamente aqueles que se encontravam proibidos pela Lei de oferecer sacrifícios a Deus (Lev 21: 17-23). Ora, esta chamada à mesa do jantar, coloca estes deficientes na difícil posição de não terem como pagar. Exactamente como nós, chamados a um outro mundo, vivendo e operando neste, não sendo de cá mas vivendo cá, como se este mundo não fosse o melhor mundo possível, mas o melhor dos mundos impossíveis. Sempre sem condições de poder pagar, porque nem aos nossos pais terrenos estamos em condições de devolver o convite.

 

 

A Voz de Outro Mundo

 

Francesco Carnelutti, jurista ateu e grande criminalista italiano, folheou casualmente um evangelho que encontrou por acaso, numa viagem de comboio. Os seus olhos detiveram-se com uma estranha frase do capítulo 25 de Mateus: “Estava no cárcere e foste visitar-me.”

“Revi os assassinos, os estupradores, os parricidas, os larápios, toda aquela humanidade desconcertante, reduzida tantas vezes à condição de animais. E este Deus dos cristãos identificava-se com cada um deles, sem exclusões nem excepções. Não se quedava na nobreza do preso político ou do inocente vítima de abuso de poder. Não: “estive no cárcere”; ele é o condenado tout court, o delinquente comum. De súbito percebi que nenhuma fantasia religiosa poderia ter inventado um Deus assim. Somente o criador desta humanidade obscura e desesperada ousaria identificar-se com ela.”

Como poderia uma comunidade religiosa identificar o seu Deus com um delinquente de qualquer espécie? E logo constituída por um grupo de pobres judeus timoratos, adoradores do intangível JHWH, o Santo dos Santos, o inatingível. Aquele cujo nome tremendo não poderia ser pronunciado com medo de o profanar. É a incredibilidade das palavras do evangelho que demonstra o seu crédito. Dizia o grande pensador marxista admirador de Chesterton, Ernst Blöch, que somente um bom cristão pode ser um ateu autêntico, i.e., somente um cristão afirma que não há melhor imagem de Deus no mundo do que a de um homem. A paternidade comum de Deus, firmada por Cristo e pelos apóstolos, é a recusa de todos os racismos e de toda a escravatura ou genocídio.

Dizia Jean Guitton: “Ouvi uma vez Claudel afirmar, após ler a “Vida de Jesus” de Rénan, que se Rénan tem razão Deus não existe.” Como poderemos nós homens ter inventado um mito melhor que o próprio Deus e como pôde Deus deixar-nos no erro por vinte séculos? Como pode este mito estar associado às maiores obras de arte e ao maior desenvolvimento civilizacional à face da Terra? Como pode um mito importar-se comigo e o Deus real ser indiferente à miséria da minha existência? Pois bem, se Cristo é um mito, então também eu sou ateu. Se eu sou indiferente para esse Deus dos deístas, então esse Deus também me é indiferente. Sem Cristo, não acredito em nenhum Deus!

 

 


Conclusão

 

“Os historiadores do ano três mil, que vierem à posse de uma biografia de Napoleão, salva por acaso da catástrofe atómica, se seguirem o mesmo método usado com Jesus, demonstrarão que a epopeia napoleónica não é mais do que um mito. Uma lenda, na qual os homens do longínquo século XIX encarnam a ideia pré-existente do “Grande Chefe”.

As expedições no deserto e entre as neves, o nascimento e a morte numa ilha, o próprio nome, a traição, a queda, a ressurreição, a recaída definitiva sob os golpes da inveja e da reacção, o exílio no meio do oceano.

«De tudo isto parece evidente que Napoleão nunca existiu. Trata-se do mito do eterno Imperador, talvez seja a ideia da própria França, a que algum obscuro grupo de fanáticos da fé patriótica deu nome, existência, empresas fictícias no início do século XIX» - dirão esses peritos, i.e., os sucessores daqueles estudiosos que aplicam este método ao problema de Jesus de Nazaré.”

 

E volto ao meu pai. O seu estado lembra-me o poema “Cavalinho” da adorável Matilde Rosa Araújo que hoje ninguém cita, porque os nossos corações foram tocados pelo olhar da medusa: Paizinho, paizinho/ Passou tempo sem medida/ Tu ficaste velhinho/ E eu tornei-me tão crescido. O meu pai não é uma figura particularmente bonita, nem excepcionalmente inteligente, nem rico ou influente. Tem contudo, uma característica que o diferencia de todas as outras pessoas: é o meu pai! E neste passar do tempo que não volta foi na face dele que eu sempre encontrei a face de meu Pai, o Deus escondido, o Deus absconditus. Um dia sonho caminhar ao lado do meu pai nos bosques do Paraíso, onde entre regatos e castanheiros, encontrarei as lontras e as raposas da sua Beira Alta natal. Nesse dia sonho contemplar a face amiga e o olhar terno do meu Deus sofredor.

 
 

 



 

António Campos
 

Notas: Este texto é, em grande medida, uma sinopse do fantástico livro “Hipóteses sobre Jesus” de Vittorio Messori, cuja leitura não dispensa de modo nenhum.

 

 

1 Levítico: O resgate de uma mulher vale exactamente metade do de um varão. Eclesiástico 42: “É melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher.”

Mas o valor da mulher fora de Israel era muito pior: O culto de Mitra do século IV, excluía completamente as mulheres. O único culto que poderiam seguir era o de Ísis ou a prostituição sagrada. Sócrates ignora as mulheres. Para Platão não há lugar para elas na boa organização social (nem sequer a nível sexual, considerando para este propósito muito melhores os jovenzinhos). Para o estóico Epícteto estão ao nível do paladar. Para Eurípedes, é o pior dos males. Para Aulo Gélio é um mal necessário. Para Aristóteles, é por natureza defeituosa e incompleta (interrogo-me sobre que órgão do homem lhe faltará…). Para Pitágoras, influenciado por todas as modas orientais, foi criada pelo princípio do mal que criou também o caos e as trevas. Para Cícero se não houvesse mulheres os homens falariam com os deuses. “Ficou em casa a fiar lã” era o máximo elogio dos epitáfios colocados nas tumbas das mulheres romanas.

Para Giordano Bruno a mulher é vazia de todo o mérito, onde só se encontra soberba, ira, luxúria, falsidade, nojo, mau cheiro, cadáver em putrefacção, mercado de porcarias. Para Kant, a inteligência é característica do homem enquanto que sensibilidade e emoções são atributos da mulher. Para Nietzsche varia do “não te esqueças do chicote quando vais falar com mulheres” a um mais soft “a mulher foi o segundo erro de Deus.”

Mas o livro do Génesis afirma a igual dignidade: “E criou-os homem e mulher”. Com Cristo: “No Céu viverão como anjos de Deus”. A parábola das virgens prudentes afirma que a mulher para realizar a sua missão humana não necessita tornar-se esposa e mãe. O Messias é “feito de mulher”, como afirma Paulo, que a eleva à qualidade de Mãe de Deus. “Todas as gerações me chamarão a bem-aventurada.”

E no Talmude:

"Cuida-te, quando fazes chorar uma mulher, pois Deus conta as suas lágrimas.
A mulher foi feita da costela do homem, não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser igual…debaixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser amada!"

 

2 Em Roma e em Atenas, até ao reconhecimento da paternidade, o filho não tinha qualquer direito à vida; o seu destino estava completamente nas mãos do pai. Platão afirma ser necessário deixar morrer os filhos das famílias muito pobres. Para Aristóteles, a criação dos pequeninos deficientes deve ser proibida por lei. Os Essénios excluíam completamente as crianças. Para Cristo, elas são um modelo epistemológico e uma prova do verdadeiro amor.

sábado, 21 de março de 2015

Chesterton e As Amizades Perversas da História


O grande ensaio de G. K. Chesterton sobre Voltaire e Frederico II1, lança luz sobre outra
das dimensões de algumas personalidades marcantes da História, sobretudo quando o que preside à sua relação é a real politik. Uma atitude que Chesterton compara à relação entre Herodes e Pilatos, que passaram de odiados a amigos na sequência da condenação de um inocente, por motivos puramente práticos: “É melhor que morra um só homem!”

Para Chesterton, o encontro do Sr. Arouet, mais conhecido como Voltaire, com Frederico II, marca o início do moderno cepticismo da mesma forma que o “encontro” entre Herodes e Pilatos marca o início do cristianismo. Uma começou com uma estranha amizade que acabou em desavença; a outra com uma desavença que acabou numa estranha amizade. Chesterton chamou a isto as amizades perversas da História: “Às vezes parece-me que a História se encontra dominada por estas amizades perversas.”

O tipo de amizade que une dois egoístas, que por razões puramente de conveniência se decidem aliar, termina sempre do mesmo modo. Por algum tempo, a noção de mútua vantagem indu-los a suportarem-se, mas mais cedo ou mais tarde a natureza de cada um deles exterioriza-se e a amizade termina.


Chesterton descreve esta monstruosa combinação, como o cíclope Polyphemus, depois de Ulisses o ter cegado na caverna (Virgílio, Eneida): monstrum, horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum (um monstro horrível, disforme, imenso, desprovido da luz e de visão). Como uma amizade destas se funda na conveniência e não no amor, o que dela resulta não é nada de bom, não é uma coisa una, mas dois males conflituantes; uma dialética. Com Voltaire, os latinos aprenderam o cepticismo raivoso; com Frederico, os alemães aprenderam o orgulho furioso. O facto de ambos serem cosmopolitas e não patriotas (Voltaire ridicularizou a padroeira de França e Frederico falava francês em vez de alemão na sua corte – aliás, desdenhava da literatura alemã), fez com que não apenas não amassem o respectivo país, mas com que desdenhassem do homem e do cosmos.



Apesar de Voltaire infantilizar os pobres (como Locke), sem os respeitar, falando da crueldade para com os pobres como se fala da crueldade para com os animais, Chesterton acreditava que Voltaire era melhor pessoa do que Frederico:

“Nenhum deles jamais amou muito alguma coisa. Voltaire era o mais humano dos dois; mas Frederico por vezes também falava do humanismo cínico que era a marca da sua época hipócrita. Voltaire, mesmo no âmago do seu brilhantismo, iniciou a atitude moderna que arruinou o humanismo que sinceramente defendia. Iniciou o hábito horrível de tentar ajudar os seres humanos por lhes chamar idiotas e não por os respeitar. Para ele, a opressão dos pobres era uma espécie de crueldade para com os animais, perdendo todo aquele sentido místico de que ferir a imagem de Deus é insultar o embaixador de um rei. E, no entanto, acredito que Voltaire tinha coração, enquanto que Frederico era mais implacável quando era mais humano.”

Chesterton sublinha o ateísmo ou deísmo de ambos os personagens e acusa-os de trair os ideais democráticos promovendo a tirania (Frederico) e o secretismo (Voltaire e Frederico):

“Estes dois cépticos concordavam em que não existia Deus nenhum, ou a existir um Deus, ele preocupar-se-ia tanto com os seres humanos como com os ácaros do queijo. Nesta base concordaram, nesta base discordaram: «Provarei que o escárnio de um céptico pode construir uma república de uma revolução que por toda a parte derrubará o trono e o altar». E Frederico respondeu: «E eu mostrarei que um cepticismo desdenhoso pode ser usado para resistir à Reforma, para ser o suporte da pior das tiranias, para o mais brutal despotismo de um senhor sobre os seus escravos». Despediram-se e, desde então, encontram-se separados por dois séculos de guerra.” 

“A promessa de Voltaire de produzir uma revolta que levantasse as multidões para derrubar os tronos não foi a evolução final do cepticismo. O efeito final naquilo a que chamamos democracia foi o desaparecimento das multidões. Podemos dizer que havia multidões no início da Revolução e nenhuma no seu final. Que a influência de Voltaire não se quedou pela regra das multidões, mas pela regra das sociedades secretas. Falsificou os políticos em todo o mundo latino, de que a recente contra-revolução italiana (Mussolini) é um exemplo. Voltaire produziu um tipo de político profissional, pomposo e hipócrita, o qual ele seria o primeiro a satirizar.”

 

“Frederico que não adorava nada tornou-se um Deus para ser cegamente adorado; ele que não gostava particularmente da Alemanha tornou-se o grito de guerra daqueles que vêem a Alemanha acima de tudo (o hino alemão é Deutschland über alles). A raiz de ambas as perversidades emana do mesmo tipo de irresponsabilidade ateia: nada impediu o céptico de transformar a democracia em secretismo; nada o impediu de interpretar a liberdade como uma licença para a tirania.” 

Chesterton termina dizendo que no seio do protestantismo sempre se duvidou de Voltaire, mas que Frederico foi muitas vezes visto, pelo menos em Inglaterra, como um herói protestante: “Podemos ser ensinados pelo general Göring, pelo menos até aprendermos que nada é mais anárquico do que a disciplina separada da autoridade, i.e., do direito.”

Para Chesterton, desta dialética quase resultou a morte da fé, mas o vaticínio de Voltaire não se confirmou: não só a fé sobreviveu à sua morte, como o seu ateísmo não prevaleceu até ao fim. Face ao nacional-socialismo emergente na Alemanha (este ensaio As I Was Saying foi escrito no ano da morte de Chesterton, 1936), Chesterton responsabiliza mais Frederico do que Voltaire como o maior anarca dos dois (na verdade, a muralha de Berlim foi mandada construir não para defender a cidade, mas para evitar a deserção dos cidadãos em idade militar, transformando Berlim numa prisão).

As palavras de Brecht usadas correntemente para exaltar a paixão marxista pela “libertação” dos povos, todos apontam as águas caudalosas de um rio mas raros são os que reparam nas margens que o apertam, são elas próprias ilustrativas do carácter alemão, desde que a obediência foi elevada ao altar para que o homem sirva o despotismo. Aliás, inclinação possuída pelo próprio Brecht: “Brecht nunca se sentiu verdadeiramente atraído pelo movimento dos trabalhadores – o qual nunca lhe foi próximo ou familiar – mas por uma necessidade profunda de autoridade, de uma submissão total a um poder absoluto, à igreja imutável e hierárquica do novo Estado Bizantino, baseada na infalibilidade do chefe.”2

 

Para quem crê que Chesterton julga Frederico com dureza, nada melhor do que ler o poema do próprio Voltaire, A Lei Natural, dedicado a Frederico, o Grande, após a sua prisão em Frankfurt:

"De contradições, uma pilha monstruosa,

Chamando aos homens irmãos, esmagando-os sem piedade;

Com ar humano, um bruto misantrópico;

Quase sempre impulsivo, por vezes muito deslambido;

Fraco na sua cólera, modesto no seu orgulho;

Ansiando pela virtude, é a luxúria personificada;

Estadista e escritor, de um povo esquivo;

O meu mecenas, aluno, e também perseguidor."

 

Estes dois homens eram homens de alta cultura e percepção era coisa que não lhes faltava.3  O que lhes faltou foi ouvir e aceitar o testemunho de uma fé sobrenatural que não permeabiliza o orgulho. A sua cultura resultou em orgulho e desprezo, tentando destruir aquela civilização no seio da qual eles próprios se formaram:

“É muito estranho que homens que consideram que todas as mitologias são apenas símbolos se dediquem ao culto de deuses esquecidos e dos templos caídos da Babilónia e do Antigo Egipto, os mais remotos, decadentes e vazios de significado. É incrível como homens que reconhecem que todas as coisas fazem parte da divindade se dediquem a atacar ou a ignorar coisas que milhões de pessoas da sua própria civilização e do seu próprio sangue afirmaram ser divinas.”4

 

Chesterton combateu toda a sua vida precisamente contra esta insensibilidade para com os outros que resulta da falta de humildade. Este “deserto de ingratidão” nunca dá bom fruto, porque nunca conduz os seus próprios possuidores a qualquer tipo de felicidade, porque nunca os predispõe à partilha e porque do seu hedonismo e desprezo só resulta sofrimento:

“O misticismo cristão distingue-se dos outros misticismos porque tende a ser democrático enquanto que os outros são aristocráticos. O neófito moderno encontra-se possuído pela ideia de que se ergue no mundo espiritual. É uma ambição digna de um merceeiro que quer ser baronete. No mundo espiritual um homem tem que se humilhar para ser exaltado. Existe muito deste snobismo místico sobre preparação, purificação e iniciação. Trata-se de furtar um caminho a outros para obter a posse da verdade, não porque seja óbvia, mas por ser secreta.

 
 

O facto de tantos estudantes modernos do transcendente possuírem o desejo de pertencer a uma aristocracia espiritual, de se sentar em tronos pelos quais há que competir, tal como com os lugares de um governo, é uma prova simples e suficiente de que não possuem em si mesmos sequer os rudimentos da espiritualidade. O misticismo cristão obedece ao princípio de que a vida moral não é um puzzle egoísta no qual o diabo geralmente apanha a pessoa mais confiante em si própria.

A verdadeira chave do misticismo cristão não é tanto a entrega, que é dolorosa e complexa, mas mais o esquecer-se de si, tal como o experimentamos em presença de um nascer do sol ou de o rosto de uma criança, o qual é para nós tão natural como cantar a um passarinho.”4

 

 

António Campos

 

 

 

1 Texto baseado no livro de Chesterton As I Was Saying de 1936, capítulo IX.

2 Herbert Lüthy, Du Pauvre Bertold Brecht, 1953.

Para uma avaliação mais completa dos diversos encontros de Frederico com Voltaire, antes e após Frederico ser rei, do ambiente em Sanssousi, da missão de espionagem de Voltaire, da idolatria da literatura francesa por toda a Europa, dos altos rendimentos de Voltaire e da sua vida faustosa, das suas falsificações e envolvimento em negócios sujos, do carácter sórdido destas personagens, do modo como Frederico disse a d'Alembert, dois anos após a morte de Voltaire, que todas as manhãs dizia "divino Voltaire Ora Pro Nobis", sugere-se a leitura do artigo :




http://books.eserver.org/nonfiction/strachey/voltaire-and-frederick.html

  4 Chesterton, O Mistério dos Místicos, Daily News, 30.08.1901.

quinta-feira, 19 de março de 2015

O Escarnecedor

 
 
 
 
 
Em O Sonho de Platão e em Cândido e o Optimismo, Voltaire ataca o conceito optimista de que tudo
está certo no melhor mundo possível. Incapaz de dar uma resposta satisfatória ao problema do mal, o optimismo iluminista lida deste modo com o problema de justificar a presença do mal perante uma divindade benevolente. A resposta só pode ser uma: o mal não existe, tudo está no seu devido lugar. O mundo não podia ser melhor atendendo àquilo de que a sua existência depende e, no cômputo geral, é um mundo bom. Ora, este tipo de resposta iluminista ao problema do mal é atacada pela outra resposta iluminista, numa dialética, o pessimismo: se tudo é bom, se tudo está no seu devido lugar, porque há terramotos, porque sofrem as crianças? Não nos iludamos, não sejamos idiotas: o mundo é bastante mau e há que abrir os olhos para essa realidade, de forma a que o homem possa sobreviver, competindo, para vencer. Destas duas posições se originaria o cientismo-romantismo, realismo-simbolismo, positivismo-naturalismo.

 
Ambas as posições diferem fundamentalmente daquilo a que Chesterton chama o realismo metafísico, a noção de que a criação é inteiramente boa e que é uma atitude espiritual, ao fazer mau uso dela, que origina a entrada do mal. Tal como numa peça de que não se conhece o final, é a liberdade dos encenadores e actores que assegura a intensidade, originalidade e autenticidade do enredo. O mundo material não é mau, muito pelo contrário, é uma criação artística sublime que deve merecer a nossa reverência e uma atitude de alegria. É uma parte do mundo espiritual e, consequentemente do próprio homem, que faz entrar o mal no mundo pelo uso do livre arbítrio. Mas é essa mesma liberdade que, podendo originar o mal, por outro lado torna tudo tão apaixonante e inesperado, como se a criação fosse contínua e sempre com um elemento ex nihilo.
 
 
Em O Sonho de Platão analisa-se criticamente se de facto a Terra está bem dimensionada para a vida. A análise é indirecta, como sempre em Voltaire. Tudo ocorre durante um sonho de Platão, em que o Demiurgo cria o cosmos. O Demiurgo dos gnósticos oscila entre a fonte do próprio mal e um deus subordinado ao Grande Arquitecto. A ideologia gnóstica supõe que a matéria é má, a criação é má, tudo o que há de material no homem é mau. O homem deve ansiar por se livrar do corpo para libertar a alma. Este Grande Arquitecto, acima do Demiurgo, é que ilumina e conduz o homem ao conhecimento perfeito, de natureza filosófica, por ascese ou iluminação, a gnosis, de forma a que o homem se livre da acção do Demiurgo para sempre.

 
 
Voltaire, deísta, coloca a criação nas mãos do Demiurgo, que por sua vez subcontrata um demogorgon ou demiurguinho para fazer a Terra. Feita a Terra, os outros génios ou demogorgons troçam daquele que a fez com o argumento de que ela não é perfeita, nem completa, nem completamente bem adequada à vida e se encontra repleta de incongruência, inconsistência, insuficiências e defeitos (desertos, plantas venenosas, doenças, cobras e aranhas, desavenças e toda a espécie de malícia). A resposta do demogorgon que fez a Terra é um tanto surpreendente, uma vez que desacredita o próprio argumento dos que sustêm o pessimismo: “ela é muito boa, sobretudo se compararmos com tudo o resto, aquilo que vocês fizeram. (…) Pensas que é fácil fazer um animal que seja sempre razoável, que seja livre e que jamais abuse da sua liberdade?”

 
Este tropeço de Voltaire é muito típico dos escarnecedores, melhores a criticar do que a construir, cegos à inconsistência em casa própria. Voltaire extrai os argumentos para a sua teodiceia deísta do livre arbítrio e da necessidade, com uma estratégia para expor a sua fraqueza, mas ao fazê-lo, mais por uma defesa inconsistente do que por um ataque fundamentado, mina a sua própria credibilidade. Talvez isso apenas expresse a sua hesitação.
 
O demogorgon usa a ciência para provar quanto o universo se encontra afinado para a vida, seja por ser criado, seja por ser estocástico, ele é de facto o melhor dos mundos possíveis até onde a ciência nos dá a conhecer. Mas mesmo que este seja o melhor dos mundos que conhecemos, atendendo à imensidão do universo não existe nenhuma razão para supor que o homem seja algo de importante. Esta tinha sido uma ideia de Micromegas (1752). Neste conto, os extra-terrestes de Sirius têm 40 quilómetros de altura e vivem mil e duzentos anos. Um destes, Micromegas, vai até Saturno onde encontra um saturniano com mil e oitocentos metros e ambos se dirigem à Terra. Apercebem-se então de que existem umas minúsculas partículas vivas e inteligentes na superfície do minúsculo planeta.

 
Claro que Voltaire não é tão tolo como muitos dos seus seguidores que se renda à vertigem do tamanho: "Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes, podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o globo a que desci."

 
Mas logo à frente Voltaire trai o seu próprio argumento ao achar ridículo que os homens lutem desde tempos imemoriais por “uma porção de lama do tamanho do vosso calcanhar” (a Palestina). Pode concluir-se que a paixão de Voltaire pela religião, sobretudo pelo clero católico, é tão grande que o faz trair a consistência das suas próprias conclusões: “Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.”
 
 
G. K. Chesterton também sublinha a fraqueza do argumento da vertigem do tamanho:
“Aquele argumento de que o homem parece menor e vulgar face ao universo físico, nunca me menorizou, porque se trata apenas de um argumento sentimental e não racional.
Eu posso sentir-me aterrorizado se observar um homem de quinze metros a caminhar pelo meu jardim, mas mesmo no pico do meu terror eu nunca teria qualquer razão para supor que tal homem fosse vitalmente mais importante do que eu, ou mais elevado na escala ontológica, ou mais próximo de Deus, ou mais próximo do que quer que seja a verdade.
O sentimento de um cosmos imenso e todo-poderoso é um sentimento agarotado e histérico, embora muito natural e humano.
Mas se queremos realmente discutir se o homem é, de facto, o centro moral deste mundo, ele não se encontra menorizado pelo facto de não ser a maior estrela ou por não ser o maior mamífero. A menos que se tenha como a priori que a Providência tem que colocar a maior alma no maior corpo, tornando o centro físico sinónimo do centro moral, "a vertigem do infinito" não tem mais valor espiritual do que a vertigem de uma escada ou a vertigem de um balão."
 

 
Ao conferenciar com os minúsculos terráqueos, os extra-terrestres surpreendem-se perante a sua incapacidade de definir a alma e, mais uma vez, Voltaire trai o argumento deísta:
“(…) perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia.
- Absolutamente nada - respondeu o filósofo - é Deus que faz tudo por mim; vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe.
- É o mesmo que se não existisses - tornou o sábio de Sírio.”

 
 
Ora o objectivo de Voltaire não é a vertigem do tamanho mas a afirmação da existência de vida extraterrestre. O ataque à afirmação tomista de que tudo foi feito para ficar à disposição do homem. Perante tal argumento os extra-terrestres desmancham-se a rir e acusam criaturas tão pequenas de serem muito arrogantes. Aparentemente tal afirmação cai por terra se houver vida extra-terrestre.
 
Ou não…
 
A ciência, ao sublinhar as tremendas exigências para a existência da vida no universo, reafirma o quanto a Terra está adequada à vida, i.e., a sua singularidade. A ciência jamais provou até hoje a existência de vida extra-terrestre. Nem sequer afirmou que é provável, pois não tem dados para cálculo de probabilidade. O que a ciência afirma é que é possível.
 
Voltaire falha no seu escárnio pela superficialidade da argumentação. Se a nossa existência é uma causalidade contingente, então é miraculosa, porque até agora, tanto quanto conhecemos, é única; se a nossa existência depende de uma inevitabilidade evolucionista, então é criação. Isto significa que a questão do significado e do nosso lugar no universo não é uma questão científica, o que apenas pode preocupar os devotos do cientismo.
 
Voltaire, em Micromegas, reflecte a mente de Locke; o seu Deus resultante do pensamento puramente humano: “Eu não sei como penso, excepto que nunca penso sem que seja por sugestão dos meus sentidos. Não duvido que haja substâncias imateriais e inteligentes, mas duvido seriamente que Deus possa fornecer a capacidade de pensar à pura matéria. Eu não afirmo nada, limito-me a afirmar que tudo é mais possível do que as pessoas supõem.” Voltaire aplaude mais a viagem do que o destino, mais a busca em si do que a verdade. Este pensamento é tipicamente gnóstico e relativista:
 

 

 
“Prometeu-lhes que redigiria um belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em branco.”

 
Esta controvérsia relativista persegui-lo-ia até à morte. Defensor da tolerância atacava os cristãos e os escritos bíblicos. Mozart diria da sua morte: “Esse grande canalha finalmente chutou o balde (os suicidas pela forca tinham que chutar o balde para ficarem suspensos pela corda).”
 
António Campos