sábado, 25 de outubro de 2014

HEGEL Para Principiantes - Fenomenologia, Uma Crítica Elementar




"Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, - o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. A saúde da alma é a ocupação mais digna do médico. (...) A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas..."

Machado de Assis, O Alienista




Nesta crítica pretende-se expor o sofisma hegeliano, a sua desancoragem da realidade
concreta. O caminho que a mente toma quando entregue a si própria. Existe algo no idealismo alemão que lembra a esquizofrenia: a pobreza afectiva, o brilhantismo intelectual (pelo menos nas fases iniciais), uma lógica muito própria, o ensimesmamento, que termina em sofisma ou idiotia, como o próprio Hegel referiu sobre Kant.



 – O retorno a si


- de Deus: se Deus tem que se “tornar” Deus ou “mais Deus”, tomando consciência de si por uma necessidade de descer ao concreto, isso significa que Hegel já não está a falar de Deus, por definição, mas de “um outro”. Eu posso acreditar que o António Campos não existe, o que não posso dizer é que o António Campos que eu não conheço, é menos António, sendo porventura mais Joaquim. É muito interessante constatar que sendo Hegel oriundo da Reforma, que proíbe toda e qualquer representação de Deus, ele está, nada mais nada menos, a elaborar uma representação de Deus. O Deus de Hegel não é Deus, é uma representação elaborada por Hegel, um mito saído da cabeça de Hegel. É completamente contraditório, tal como o seu próprio pensamento. O Deus de Hegel precisa do universo como o homem precisa de um corpo, precisa de aperfeiçoar o mundo para se aperfeiçoar a si mesmo, não é eterno e imutável.
Em Is 45, 1, 4-6, afirma-se “Eu sou o Senhor e não há outro; fora de mim não há Deus.” Hegel inventa um ídolo, representa Deus. As imagens de Deus como ancião, como representado no livro de Daniel, Dan 7, 9-11, e no Apocalipse de S. João, são muito menos idolátricas, consideradas do ponto de vista de quem não admite representações.


- do Homem: sem dúvida que nenhum homem nasce acabado e que o sentido da vida reside no aperfeiçoamento e no conhecimento, não apenas na arte, na ciência ou na filosofia, mas também na verdade e no bem. Mas é lícito dizer que o homem apenas aprende a constatar o que já era? O homem não toma apenas consciência do que já era, o homem avança no véu do futuro para aquilo que se torna. Aprender não é meramente recordar, a reminiscência, como dizia Platão. Aprender não é déjà vu. Aprender é maravilhar-se, é acender a luz, é emocionar-se. Como posso dizer que apenas é recordar o que aprendi quando o meu filho esteve muito doente se antes eu não tinha filho? Como posso estar meramente a recordar quando tomo conhecimento com a morte do meu pai se nunca antes o meu pai tinha morrido? É absurdo.


 – Um homem não se banha duas vezes na água de um rio


Nem o mesmo homem, nem a mesma água. 
Tomemos o exemplo de uma vela que acendemos numa noite de Natal. Passada uma hora, a vela pode ter metade do tamanho e ter algumas alterações na sua forma. Será lícito dizer que não se trata da mesma vela? O homem de ontem é absolutamente contínuo com o homem de hoje. Num mesmo homem coincidem o velho, o adulto, o rapaz e a criança. Nenhum deles é menos humano. Nenhum deles deixa de ser o mesmo homem. A água do rio evidentemente nunca será exactamente a mesma. Mas será que a água como substância não mantém basicamente as mesmas propriedades gerais para que possa continuar a ser considerada como água? Em que difere substancialmente a água do rio de ontem da água do rio de hoje? O que difere no odor da rosa deste ano com a rosa que cheirei na primavera passada? Será que passou a cheirar a jasmim?





 – A consciência de si como conflito ou violência sobre o outro


A primeira identificação com o “externo” é com o seu próprio corpo – a criança chupa o dedo, a criança tem fome e ouve o seu choro, a criança tem cólicas – e com a sua mãe – o rosto da mãe é constitutivo. O primeiro e mais importante meio onde se dá a identificação, a família,  é em geral um ambiente de cooperação, simbiose e reconhecimento mútuo, não de competição. Conhecer-se a si mesmo certamente não significa tomar posse do outro, englobá-lo.


- O “conhecer-se a si próprio”


A civilização ocidental tem uma tradição mais marcada sobre o conhecimento do “outro” e não de si próprio. Essa é a marca do Oriente. Desde os gregos que existe a maldição de Narciso. Ninguém se conhece devidamente sem levar em conta as opiniões dos outros, embora elas mesmas  falíveis. Se conhecer-se a si mesmo significar comparar-se com outro ou com qualquer teoria psicológica ou comportamental elaborada por outrem, a comparação será sempre subjectiva e dependente do “espírito da época”. Nesse aspecto, Hegel estava completamente certo, cada época tem o seu espírito e olha com sobranceria para as épocas que a precederam.




- A Natureza Intuitiva do Referencial Absoluto


É impossível alguém ter consciência de si sem um referencial absoluto: a verdade ou uma ética com conteúdo. Uma verdade relativa ou uma ética meramente formal nunca assegurarão a consciência de si. Se não soubermos claramente o que é bem e mal, como nos veremos? E mesmo se pudéssemos acreditar na verdade, jamais teríamos plena consciência de nós. Conhecer-se a si próprio é como correr atrás da própria sombra. Tentar conhecer-se sem uma ancoragem no absoluto ou sem um referencial externo é como uma sessão espírita: ninguém sabe verdadeiramente a origem do que ali se passa. A opinião dos outros, mesmo dos que não gostam de nós e dos nossos inimigos, será sempre de levar em consideração. 

Se eu for objecto do meu próprio sujeito, então sujeito e objecto encontram-se dentro de mim, ensimesmados. Não existe alteridade, eu e o objecto do meu conhecimento, porque ambos estão dentro de mim. O conhecimento obtido desta forma nunca será um conhecimento objectivo; nunca será conhecimento, será mera opinião. Ou eu penso, como Hegel, que todo o universo se encontra dentro de mim, ou então devo reconhecer que não é possível conhecer-me de forma objectiva com base apenas nos meus próprios recursos. Imbuído dessa atitude, qualquer tentativa de obter o conhecimento de si está destinada ao fracasso. O indivíduo viverá na ilusão hipnótica do encantamento. Ao tentar conhecer-me apenas a partir de mim mesmo eu não estou a ser racional, estou a ser idiota. 






 – Deus nunca nos disse para nos conhecermos a nós próprios, mas para amarmos os outros


Primeiro amar os outros como nos amamos a nós, i.e., dar graças por sermos o que somos e amar os outros como eles são. Mas depois reforçou: amai-vos como Eu vos amei. Isto significa o paralítico de Cafarnaum, o filho pródigo, o cego e o leproso, a assistência do samaritano ao seu inimigo espancado. Significa pensar nos outros mais do que nós, negar-se a si mesmo, servir. Esta misericórdia, este amor sem limites é tipicamente ocidental. Foi este tipo de atitude de ver “no outro” a si mesmo, de ver nos homens o milhão das máscaras de Deus, que permitiu aos americanos matar a fome a tantos alemães no final da II Guerra Mundial. E foi precisamente a ausência desse reconhecimento que permitiu o holocausto, a carnificina entre americanos e japoneses no Pacífico, as guerras genocidas na Bósnia ou no Ruanda. Quando vale mais reinar no Inferno do que servir no Céu, como dizia Milton, nós observamos esta orgia homicida na Terra.
  

- A incompletude


Se o espírito tem a mesma fonte e sempre retorna, porque não veio ele ainda completar o Requiem de Mozart ou as obras de Lizst, a Suma Teológica de São Tomás ou os trabalhos de Mark Twain, a Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci ou o quadro O Tratado de Paris de Benjamin West, a Sinfonia nº 8 em B menor de Schubert ou O Mistério de Edwin Drood de Charles Dickens?

Não deverão existir poucas pessoas ocupadas, com sentido do dever, com “a dialética da acção”, que não sintam que sempre lhes falta um pouco de tempo, que o que realizam tem sempre algo de incompletude. É o tempinho de estudo que falta nos últimos dias antes do exame, é o tempo que falta para dedicar mais aos pais e aos filhos, é aquilo que ficou por fazer. Esta incompletude, e não a completude, é intrínseca à natureza do mundo e do homem, à própria vida. 

O conhecimento que é comum a todos os homens é realmente bastante diminuto. Pensemos que conhecimentos são partilhados por todos os portugueses sem excepção: o mínimo denominador comum é de facto reduzido.  Podemos pensar que muitos conhecimentos unem os médicos entre si, mas depois ficamos horrorizados se para tratar um tumor na mama nos enviarem um ortopedista.

Se um homem não é perfeito a sua tentação para o despotismo conterá sempre alguma forma de erro e de corrupção. Pode culminar na blasfémia de se considerar um “enviado de Deus”.

Se o homem não é perfeito a sua tentação da perfeição envolverá sempre um toque de loucura. A consideração de que o homem se pode completar, ou possuir uma visão completa de si próprio, produz loucos dentro de pequenos círculos.

O homem deve aspirar ao que é divino para completar a sua humanidade, mas blasfema quando tenta ele mesmo ser divino. Esta incompletude do homem remete para a existência de Deus.





 – O Carácter Perene da Matemática, da Razão, da Consciência


Se tudo muda excepto a própria mudança, porque não mudam as constantes matemáticas e os teoremas? Não mudam pela simples razão de que estão fora do tempo. E quanto à razão humana, porque não muda constantemente tornando-se inconfiável ou ininterpretável? Porque embora o homem se encontre dentro de um tempo determinado, a razão humana, quanto ao seu processo de funcionamento, está fora do tempo; são as premissas de que parte que espelham o seu tempo. A natureza do homem é sempre a mesma, a sua condição é que muda.


A mudança, o tempo, não é pois o absoluto. Ele nem sequer é absoluto no sentido físico pois varia com a velocidade da luz. Ao constatarmos que existem coisas que não sofrem a influência do tempo, intuímos que existe uma realidade fora do tempo e da mudança. Quando alguém se vê ao espelho e se apercebe de como está tão velho, essa surpresa, essa perplexidade, essa estranheza, não exprimem idiotia. Essa estranheza remete para uma consciência que está fora do tempo e que se surpreende com as modificações que o tempo imprime numa parte de si, precisamente a sua parte material que está dentro do tempo.







 – Na Fenomenologia Hegel diz que não existe sensibilidade primária não conceptual e que a consciência de si só se encontra quando temos consciência de um outro


Ambas as premissas são falsas:

1 – Os conceitos obtêm-se por comparação entre propriedades sensíveis e não o inverso. É por uma criança ver quem lhe dá carinho, toque, aconchego e comida, que liga a percepção sensível dessa face, que se repete dia após dia, a um conceito que aprende mais tarde: a mãe. É por uma criança ver a cor do tomate, do sangue, do morango, que a associa mais tarde ao conceito do vermelho. O conceito resulta obviamente da percepção sensível. Um cego de nascença não tem nenhuma condição de descrever ou imaginar visualmente a cor vermelha, que resulta da sensação de uma célula específica presente na retina de pessoas normais, que é excitada pela luz de 625-740 nm, o cone “vermelho”. Tal como um surdo de nascença não pode explicar a diferença entre uma sinfonia e uma peça de jazz. Elaboramos conceitos por comparação a partir das sensações e só desenvolvemos as áreas cerebrais correspondentes após a recepção dos estímulos eléctricos provenientes dos neurónios sensoriais. Em Gen 2, 19-20, Deus faz passar os animais perante o homem para que ele lhes atribua nomes. Isto é absolutamente correcto: primeiro vemos, depois conhecemos. É assim a realidade. Tudo começa com a sensibilidade primária.


2 – É falso que se tenha primeiro consciência do outro e só depois consciência de si. Vamos para esta prova usar o trabalho do Professor Abel Salazar (1889-1946) que corrigiu muito oportunamente Descartes: é a consciência do pensar e não o próprio pensar que nos poderá fornecer uma prova da nossa existência. “Eu sei que eu penso” e não apenas “Eu penso”. Este eu sei remete a consciência para uma dimensão misteriosa. Para Abel Salazar a consciência é responsável pela unidade da nossa personalidade e é impossível de analisar porque só é apreendida pelo próprio e é faculdade primordial que não deriva de nenhuma outra mas para onde todas as outras tendem. Foi a neuro-traumatologia e a neuro-fisiologia modernas que nos forneceram pistas adicionais, nomeadamente com António Damásio (O Sentimento de Si e O Livro da Consciência).


Desde meados do séc. XX que se sabe que o cérebro elabora “imagens” dos objectos apreendidos pelos órgãos dos sentidos. A consciência de si é então a primeira das aquisições da consciência, formando-se desde tenra idade. E contrariamente ao que afirmava Hegel, não num ambiente de competição e conflito, mas geralmente num ambiente de conforto e acolhimento. Hegel apenas parece ter especulado, ou seja imaginado, a partir da vida de adultos e talvez da sua própria vida em meio universitário altamente competitivo.

O nível mais elementar de consciência, o proto-Eu, deve-se às imagens cerebrais elaboradas a partir de estímulos oriundos de dentro do nosso próprio corpo – a sensibilidade proprioceptiva. Na criança até aos dois anos de idade a maior parte das imagens cerebrais construídas dizem respeito ao próprio corpo, porque apenas os neurónios do tronco cerebral e do hipotálamo se encontram mielinizados. 
O Eu-nuclear é elaborado progressivamente a partir dos dois anos à medida que progride a mielinização para as estruturas do cortéx, permitindo a elaboração de imagens complexas do mundo exterior por parte do cortéx visual, auditivo e táctil. O Eu-nuclear é já a plena consciência. E a prova de que a consciência de si não depende da consciência do outro encontra-se em alguns epilépticos, no automatismo epiléptico, em que o indivíduo tem perfeita consciência do meio que o rodeia mas ignora por completo a sua própria existência. O doente carece do proto-Eu. E o nosso Eu-autobiográfico fornece-nos por meio dos dados da memória a continuidade espácio-temporal.





– O Devir, ou O Tornar-se, como Absoluto


Kant atribui ao conhecimento apenas aquilo que pode ser conhecido por nós, i.e., o verdadeiro, o bom e o belo, nas suas três críticas, mas não o mundo real, “em si”. Hegel discorda afirmando que atribuir a uma forma de conhecimento inadequada, i.e., sensação ou sentir, um poder que se nega a uma forma mais determinada, i.e., a conceptual, é inadequado. Mas o seu esquema conceptual assenta na dialética e a dialética encontra-se dentro do tempo, é o devir. E assim ela nunca poderá conduzir a nenhum conhecimento absoluto porque ela tem que ser relativa como o tempo que a determina. Acresce que o próprio Hegel afirmou que a filosofia espelha o seu tempo e o filósofo não pode saltar o tempo. 

 – O Presente abstracto


Para Hegel, o presente é completamente abstracto, não existe. Porque o devir engloba passado, presente e futuro na mesma hélice. A ideia não é completamente fantasiosa. De facto o presente físico é muito difícil de definir, no sentido em que a partição de um momento de tempo é, em princípio, infinita. Mas nós temos uma consciência psicológica do presente que envolve algo do passado, um presente sempre a correr e uma pequena parte do futuro imediato que decorre como acção. Esta jangada de presente é indispensável para pensar e agir. Se eu me esquecesse do meu passado a cada minuto era impossível saber quem sou, aqueles que conheço ou agir no mundo. Será mais correcto dizer que nós temos uma percepção finita de uma realidade infinita. Chesterton dizia que o homem não pode amar coisas mortais, ele só consegue amar coisas imortais por um instante. O nosso Eu-autobiográfico parece corroborar esta tese. Neste sentido existe um aqui e um agora, Hegel não tinha razão. Se não percebêssemos deste modo, i.e., em fragmentos finitos, jamais teríamos a noção de continuidade ou de existência.



Finalmente falta apontar um ponto a Hegel. Ele que tanto “bebeu” em Espinoza negligenciou o que Espinoza disse de fundamental: as emoções e os sentimentos são essenciais aos processos cognitivos. Não é preciso especulação para isto compreender, basta intuição e senso comum. Qualquer aluno ou professor o pode testemunhar; a empatia é fundamental no processo de aquisição de conhecimentos. Aliás, uma parte essencial do relacionamento entre animais e entre o homem e o animal depende deste conhecimento e reconhecimento afectivo. Ele parece mais amplo do que o conhecimento meramente racional.






António Campos

sábado, 18 de outubro de 2014

HEGEL PARA PRINCIPIANTES - LÓGICA E DIALÉTICA



"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades."



Dialética ou a arte do diálogo, significa colocar à prova uma tese, por meio da argumentação, por forma a apurar claramente os conceitos em discussão.

Para Aristóteles, dialética era a lógica do provável, aquilo que parece aceitável por todos, ou pela maioria, e que no entanto não pode ser demonstrado.

Sócrates viveu no séc. IV a.C., uma época de relativismo moral e de decadência da polis grega. Dominavam os sofistas, que pretendiam ser conhecedores do saber universal, comentando todo o tipo de assuntos (como fazem os actuais comentadores de televisão, o oráculo moderno). Sócrates afirmava que nenhum homem poderia saber tudo, só os deuses, portanto um homem deveria apenas pronunciar-se sobre assuntos que de facto conhecesse. Para o apuramento conceptual utilizou a sua dialética que consistia na ironia e na maiêutica. A ironia consistia em colocar questões sobre a formulação de um conceito pelo interlocutor, expondo as contradições, a fraqueza ou a imprecisão do conceito. Ao constatar que o conhecimento que tinha do conceito não era adequado, o interlocutor re-elaborava a definição, parindo um novo juízo sobre o conceito (maiêutica). O objectivo de Sócrates não era  impor um ponto de vista mas sim  fazer ver.


Para Heráclito, a realidade é contraditória, em permanente transformação e os seres não têm estabilidade alguma: “Um homem não se banha duas vezes na mesma água de um rio.” Nem o mesmo homem nem a mesma água.

Hegel retira de Heráclito este conceito da instabilidade do ser - como o ser é multiforme, i.e., homem, animal, planta, pedra, etc., então ele nada é em concreto – e o conceito de movimento circular e permanente mudança (o homem de hoje já não é o homem de ontem). Retira de Platão o conceito de que apenas as ideias são reais, enquanto que as coisas concretas perecíveis, abandonadas a uma corrente constante de mudança, são irreais, meras aparências. Retira de Kant, como afirma Popper na Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, o conceito de a priori, as ideias existentes na mente como conhecimento absoluto, racional. Desta combinação ideia-real / ideia-razão resultou por triangulação (e Hegel adorava triângulos), o conceito central de real-racional.

Por outras palavras, tudo o que parece racional para aqueles que possuem a razão “na moda” é a pura realidade. O auto-convencimento é equalizado à verdade, a opinião ao conhecimento verdadeiro. Desde que se esteja actualizado com as ideias correntes, i.e., na moda, basta acreditar nessa doutrina dominante e ela torna-se, por definição, a própria verdade. Hegel afirma que o subjectivo, i.e., a opinião ou crença, e o objectivo, i.e., a verdade, se tornam uma identidade e por esta união de opostos acontece o conhecimento científico: “A ideia é a união do subjectivo com o objectivo. A ciência pressupõe que a separação entre si e a verdade se encontra cancelada.”
(A ideologia chegou ao altar da razão…).





Lógica, logos, estuda o raciocínio válido. Se o objecto é forma e conteúdo, então a lógica (aristotélica) estuda a forma do raciocínio verdadeiro independentemente do seu conteúdo. Assume a forma de silogismo: Se a premissa "tudo o que é a é b" for verdadeira, então se x é a, x é b, independentemente do que for a, b ou x. Na lógica o conteúdo não possui qualquer interesse. Tudo depende da premissa. Devido a essa separação entre forma e conteúdo, a lógica não nos diz nada sobre o mundo real. Contém mais dois princípios fundamentais: a lei da não contradição e a lei do terceiro excluído. A primeira afirma que algo não pode ser simultaneamente verdadeiro e falso; a segunda afirma que uma afirmação não pode ser nem verdadeira nem falsa; ou é uma coisa ou outra.


O objectivo da lógica para Hegel é a verdade. E o que é a verdade? Hegel afirmava que não existe realidade fora do pensamento e que existe identidade entre realidade objectiva e pensamento, i.e., são uma mesma coisa. Hegel utiliza esta ideia para negar essa distinção entre forma e conteúdo: se a lógica estuda o pensamento, ela estuda a realidade, “se ainda se quiser empregar a palavra matéria, o conteúdo da lógica é a verdadeira matéria. É a verdade, tal como ela é. Este conteúdo mostra Deus tal como ele é em sua essência eterna, antes da criação da natureza e de uma mente finita".

Este argumento tem por objectivo atacar a ideia de que a verdade ou a realidade se encontra no mundo concreto das pessoas e na natureza externa. A verdade encontra-se no pensamento racional. A lógica é, portanto, o estudo dessa realidade última na sua forma pura, abstraída de formas particulares. Como a mente molda o mundo, o estudo da mente informa sobre o modo como o mundo foi criado, i.e., torna completamente cognoscível a essência eterna de Deus antes da criação.

Trata-se de uma lógica com conteúdo “transcendental” mas não no sentido kantiano. Para Kant, a lógica transcendental (as categorias lógicas) era característica dos intelectos finitos discursivos, deixando a possibilidade da existência de um tipo de lógica acessível ao conhecimento intuitivo que seria atributo exclusivo de um intelecto infinito criador (Deus). Hegel oscila entre a noção de um intelecto humano como reflexo de um intelecto divino – uma correia de transmissão - ou a da inexistência pura e simples de um tipo de intelecto diferente do humano. Ou o intelecto humano exprime a vontade do intelecto divino, sem autodeterminação (deísmo), ou não existe nenhum intelecto divino (ateísmo).




Uma Gramática do Pensamento



Na lógica de Hegel o pensamento encontra-se dobrado sobre si próprio, ensimesmado. Distancia-se do mundo externo, não o tenta compreender, pois considera-o um produto de si próprio. O pensamento versa apenas sobre categorias lógicas nas quais se vai encaixar o mundo e toda a realidade, porque Hegel pensava que se tratasse de compreender o mundo como uma realidade parcial, externa, a razão o enganaria. Hegel chama a este estado “dedutivo” da lógica, algo que salta à vista, algo como a gramática, uma espécie de código evidente.

Não se trata de uma lógica formal ou geral mas sim daquilo a que Kant chamou a lógica transcendental – a dedução das categorias – na Crítica da Razão Pura. O próprio Kant acreditava ser evidente ao julgamento empírico de qualquer um dos intelectos discursivos, i.e., acessíveis, evidentes e aceitáveis por todos os homens. Como se trata de uma lógica de conteúdos é uma ontologia: o tudo e o nada, o ser e o tornar-se, a essência e a ideia, o uno e o múltiplo, a substância e o acidente, a forma e o conteúdo, o sujeito e o objecto, a mudança e a perenidade, a realidade e a potencialidade, a essência e a aparência, a matéria e o espírito.




O Que Significa Então Conhecer?
A Ideia de Progresso Circular Rumo à Perfeição ou ao Absoluto



O objectivo da Lógica é claro: demonstrar a necessidade do idealismo absoluto. A lógica lida com conceitos enquanto que a Fenomenologia lida com a consciência: "somente a ideia absoluta é ser, é vida imperecível, a verdade que se conhece a si mesma, a verdade inteira". O que é a ideia absoluta? Tudo! Todos os particulares fazem parte deste geral. A sua auto-compreensão é o Estado na Filosofia do Direito; é a consciência na Fenomenologia (o panteísmo, nós-a-natureza-deus, para evitar a alma alienada, a consciência infeliz), é a ideia (conceito) na Ciência da Lógica.

A lógica hegeliana não tem como objecto as formas de pensamento (conceito, juízo, silogismo) mas a estrutura real imanente às próprias coisas, i.e., o que elas são e o que serão. Hegel chama a isto "o conceito das coisas", "a alma dialética" ou o seu "interno logos". A lógica hegeliana é não somente uma ontologia mas a mais ampla doutrina de categorias elaborada após Aristóteles (uma coisa e o que ela vai ser são a mesma coisa). O pensamento e a verdadeira natureza das coisas seriam, assim, uma mesma realidade. Só a totalidade é real. Tudo o que é parcial não é completamente verdadeiro. Todos os momentos são constitutivos, não são meras etapas ou fases: “Unidade na totalidade”.

Para se entender este sistema tem que se levar em conta que, para Hegel, a realidade é espírito infinito e o espírito “move-se” pela dialética. O espírito desce sempre ao concreto para regressar ao infinito numa espiral triádica: o ser em-si, o ser-outro ou fora-de-si, o retorno a si ou o ser-em-si-e-por-si. Este movimento do espírito abre “lugar” a três manifestações na realidade: A Ideia em si ou logos ou racionalidade pura que é objecto da Lógica; a Natureza que é a ideia fora de si, alienada, que é objecto da Filosofia da Natureza; o Espírito em geral que é esta ideia alienada que retorna a si e se torna em-si e por-si, que é objecto da Fenomenologia ou Filosofia do Espírito. Tudo é o desenvolvimento da ideia por meio da sua negação e superação, pelo uso exclusivo da razão. A realidade é o desenvolver da ideia: “Tudo o que é racional é real e tudo o que é real é racional”.




Tomado em si mesmo, o finito tem existência puramente "ideal" ou abstrata, no sentido de que não existe por si só, contra o infinito ou fora dele - e isso, diz Hegel, constitui "a proposição principal de toda filosofia". O espirito infinito hegeliano é então como o círculo, no qual principio e fim coincidem de modo dinâmico, ou seja, como movimento em espiral no qual o particular é sempre posto e sempre resumido dinamicamente no universal; o ser é sempre resumido no dever ser e o real é sempre resumido no racional.1




A Estrutura Triádica



O método de alcançar o conhecimento é o método dialético que tanto fascinou Marx.
A lógica tem uma estrutura triádica como defendido por Fichte, tese – antítese – síntese, mas a sua força interna é a negação. Contrariamente ao que acontece na lógica clássica, a contradição não implica a paragem do processo lógico, mas apenas a busca de uma conciliação, integração e superação, para elaborar uma nova tese que irá sofrer o mesmo processo. Kant definira dois tipos de lógica: a lógica analítica e a lógica dialética. A primeira concentra-se nos dados dos sentidos e produz o conhecimento do mundo fenoménico; a segunda independe da experiência e afirma erroneamente (para Kant) que se podem conhecer as coisas em si – é a intuição. 
Hegel não concorda:



1 – A lógica analítica é do domínio das ciências da natureza e do empirismo, não da filosofia.

2 – A lógica dialética não trata com o transcendente ou com uma realidade abstracta, mas antes com a sua manifestação concreta, se bem que multiforme, como totalidade, e pode proporcionar conhecimento verdadeiro.

Concluindo: o espírito tem que ter manifestação concreta senão não existe e o finito não tem existência senão puramente abstracta, enquanto ideia, enquanto manifestação do espírito – fechou-se o círculo.

Só será espiral e não círculo porque Hegel afirma que após a “materialização concreta” o espírito retorna a si superado, mas para efeitos práticos trata-se do mesmo.

Kant não tinha ido tão longe no materialismo, na necessidade de manifestação material para que algo seja considerado real, e muito menos nunca foi ao ponto de afirmar que Bem e Mal são meros modos e que verdade e mentira são manifestações não mutuamente exclusivas. Kant não sabia o que era a coisa em si, o númeno, e não sabia como o mal radical tinha vindo até nós. Fichte resolveu a coisa em si: a coisa em si não existe; Hegel resolveu o Mal radical: o mal não existe fora de nós, não tem existência autónoma e temos que superar o bem e o mal (esta ideia erradamente atribuída originalmente a Nietzsche é, em verdade, de Hegel).





A Estrutura Triádica - A Negação



As categorias lógicas como o ser, o devir, o uno, o múltiplo, a essência, a existência, a causa, o efeito, o particular, o universal, o mecanismo, a vida, são examinadas e colocadas a descoberto as suas contradições internas, processo a que Hegel chama a negação. Neste processo de negação sistemática, a lógica passa de estática e conceptual a dinâmica e adaptável, definindo uma nova realidade cuja finalidade última é conduzir-nos à totalidade. Para Hegel, A não é necessariamente igual a A e A não é necessariamente diferente do que não é A. Os limites precisos são apagados.

O ser, como o da criança é, para Hegel, vazio. Ainda mais vazio que a tábua rasa de Locke. É o "em-si", vazio, abstrato ou indeterminado. É a premissa! Para quem a aceite como válida, é a tese. Como vimos, tomar consciência de si é confrontar-se com o outro, é a alienação, o sair de si para o mundo, para o Outro, o estranho. É o "por-si", a antítese. Mas o sair de si favorece, como vimos, a consciência de si, o regresso a si, o reencontro. É o "em-e-por-si", a síntese. Esta transforma-se em tese e reinicia o processo da consciência de si. O processo dialético obedece não a uma afirmação mas a sucessivas negações.

No primeiro momento encontra-se a tese que mais não é do que a elaboração pelo intelecto do conceito que ele presume estável. O segundo movimento é a antítese que mais não é do que a exposição das contradições internas contidas no conceito elaborado pelo intelecto. Esta negação é o núcleo central da dialética, a sua mola propulsora. A síntese constitui o momento especulativo, i.e., a razão capta a unidade da contradição e avança com esta síntese de opostos para uma nova totalidade concreta. É a afirmação (positivação) pela negação da negação contida na antítese e a sua elevação a um nível mais alto. A negação não vai significar aniquilamento como na lógica aristotélica, mas sim elevação e “enverdadeiramento”. Este elemento especulativo é a marca da lógica de Hegel.







Aufhebung ou Superação (revogação)



A lógica de Aristóteles trata de entidades individuais diferentes que se orientam num esquema dedutivo: se a=b e b=c, então a=c. É uma lógica estática. Hegel pensa sempre em termos de totalidade como produto dinâmico, i.e., uma totalidade que preserva o que supera como numa espiral. É uma lógica não mecânica ou orgânica. A este acto de juntar e preservar, Hegel chamou-lhe superação ou revogação. Para que algo suceda tudo tem que estar no devido lugar. É como se o passado fosse constitutivo, mas ultrapassado pela união de sucessivos opostos ou contraditórios.

"Aqui é o lugar oportuno para recordar o duplo significado da nossa expressão alemã aufheben (superar). Por um lado, aufheben quer dizer tirar, negar; nesse sentido, por exemplo, dizemos que urna lei, urna instituição etc., são suprimidas, superadas (aufgehoben). Por outro lado, porém, aufheben significa também conservar; e, nesse sentido, dizemos que algo está bem conservado através da expressão wohl aufgehoben. Essa ambivalência do uso linguístico do termo, pelo qual a mesma palavra tem sentido negativo e positivo, não deve ser considerada casual, nem devemos fazer disso motivo de acusação contra a linguagem, como se ela fosse causa de confusão; pelo contrário, nessa ambivalência se reconhece o espírito especulativo da nossa língua, que vai além da simples alternativa 'ou-ou' própria do intelecto".

(Parece pacífico, certo? Basta pensar na união de cada uma das hélices do DNA e ver como toda aquela dupla hélice em espiral é constitutiva…Não! Está errado. Muito errado! A hélice de DNA não une opostos mas complementares. Complementar significa ser parte de uma realidade, como o olho e o ouvido são partes do corpo humano, como a mulher e o homem são partes da natureza humana, como a chave e a ranhura são membros da fechadura. Não são opostos. Falaremos mais desenvolvidamente sobre esta noção quando fizermos a crítica de Hegel).






O Elemento Especulativo



O momento do "especulativo" é a reafirmação do positivo que se realiza mediante a negação do negativo próprio das antíteses dialéticas e, portanto, é a elevação do positivo das teses a um plano mais elevado. Se, por exemplo, tomarmos o puro estado de inocência, este representa um momento (tese) que o intelecto cristaliza em si e ao qual contrapõe, como antítese, o conhecimento e a consciência do mal, que é a negação do estado de inocência (a sua antítese); ora, a virtude é exactamente a negação do negativo da antítese (o mal) e a recuperação do positivo da inocência num nível mais elevado, que se tornou possível passando-se através da negação da rigidez que lhe era própria e, portanto, passando através da antítese, que desse modo adquire valor positivo, à medida que leva a tirar aquela rigidez. O momento especulativo, portanto, é o "superar" no sentido de que é ao mesmo tempo o "tirar-e-conservar".


(Portanto, a inocência, i.e., a criança, é um intelecto cristalizado; para se aceder à virtude existe necessidade do mal, pelo que o mal é constitutivo do bem superior, da virtude. Isto é quase o mesmo que dizer que para se tornar um adulto decente alguém tem primeiro que abusar de uma criança – a tal necessidade de violência sobre o outro no processo de identificação. O mínimo que se pode dizer é que esta maneira de pensar é repugnante, doentia!).



O momento "especulativo" ou "positivamente racional" é o que capta a unidade das determinações contrapostas, ou seja, o positivo emergente da resolução dos opostos (a síntese dos opostos). Escreve Hegel: "No seu verdadeiro sentido, o elemento especulativo é aquilo que contém em si como superadas aquelas oposições nas quais se detém o intelecto (e, portanto, também a oposição entre subjectivo e objectivo), e justamente dessa forma mostra-se como concreto e como totalidade". A dialética, assim como a realidade em geral e, portanto, o verdadeiro, é esse movimento circular que descrevemos e que jamais tem repouso. A distinção entre sujeito e objecto é também superada porque a história da revelação do absoluto dá-se como processo de auto-conhecimento do próprio absoluto:
“Tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real.”2


 “A eterna vida de Deus é encontrar-se a si mesmo, tomar consciência de si mesmo. Para isso tem que se desencontrar ou alienar para regressar sobre si mesmo. Voltando sobre si mesmo alcança a liberdade. Esta continuidade temporal não deve ser concebida como uma linha recta mas como um círculo que retorna a si mesmo. O círculo tem por circunferência uma grande quantidade de círculos internos, uns dentro de outros. Cada espírito regressa sobre si mesmo; (cada espírito é um círculo).”


A Negação Sistemática – Os Três Tipos de Contradição



Trata-se nos três livros da Ciência da Lógica (cada um com três secções e cada secção com três capítulos – a estrutura triplamente triádica):

1 – Primeiro livro: O Ser. O Ser e o Nada, a quantidade e a qualidade. A repetição dos movimentos da Fenomenologia, mas tendo como objecto não a consciência mas o pensamento.

"O ser é o mesmo que o não ser, porque tudo é, numa diferença multiforme e, portanto, nada é em concreto. A única realidade não é o ser mas o devir. O que não era ser logo se transformou em ser e o que era ser logo deixou de ser. O que não era agora é; o não-ser passou a ser. O que era deixou de ser: o ser passou a não ser. Assim se demonstra a identidade entre ambos. Desta dialética entre o ser e o nada, a conclusão é a de que o real é não apenas o que é mas também o que pode chegar a ser, o tornar-se. A realidade é não apenas o real mas também o possível. Do nada surge o ser e este regressa ao nada. Esta eterna circulação é a dialética do processo da vida, a dupla negação: ser-não ser, primeira negação; não-ser-ser resultante do devir, segunda negação. Se do nada surge algo é porque esse algo já estava contido no nada. Portanto, o nada é. O nada é o que pode chegar a ser e todavia não é. O ser é absoluto e o nada é relativo (está contido no ser, não é o seu oposto perfeito). É relativo a ser: o nada é! É a possibilidade abstracta e inconsciente. Só o que é racional pode ser consciente de si. Embora um embrião seja um ser humano, não o é para si. O homem é busca: busca-se a si mesmo. O homem deve chegar a ser para si o que é em si."


(Isto é o mesmo que afirmar que por uma rosa, um tomate ou o sangue serem vermelhos, o vermelho não existe! Ou que é igual ao incolor. A resposta adequada para esta questão é antes a da analogia do ser, i.e., o que há de comum no centro mais interno de todas as coisas. Ou que a água por poder ser sólido branco, líquido incolor ou gás, não existe, apenas existe enquanto mudança. O ser é um acontecimento, o devir é o processo, a transformação).

É interessante como as questões filosóficas são abordadas pelos grandes escritores, geralmente com mais equilíbrio do que os próprios filósofos. Existe o exemplo de Shakespeare, que coloca na mente de um louco, Ricardo III, o pensamento de Nietzsche. No caso presente, existe o caso de Camões, que apontando para a natureza mutável do mundo, como uma sua característica fundamental, em nada essa propriedade se coloca em conflito com a existência do mundo, com o seu ser - uma coisa só muda porque não deixa de existir, porque se transforma, como afirmou o fundador da química moderna, A. Lavoisier.

2 – Segundo Livro: A Doutrina da Essência. A Essência e a Aparência. Os opostos implicam-se: o interno e o externo. Definir um é definir o outro. Ideias fundamentais: as essências replicam-se, por isso o que não é pode chegar a ser (continuamos à espera de sereias e unicórnios) até se chegar ao espírito absoluto. O absoluto não se pode representar; a realidade não é apreendida por representação. Detenhamo-nos nesta última:

Se a realidade resulta da materialização do espírito para o retorno à ideia aperfeiçoada, pensamento ou espírito, a realidade é conhecida em si mesma pois ela nada mais é do que o devir ou o progresso do próprio pensamento. A realidade é a ideia e a ideia é a realidade. Não existe conhecimento fenoménico, como afirmara Kant, não existe conhecer por comparação e dedução, não existe uma forma mais perfeita de conhecer como afirmara Paulo de Tarso; em suma não existe a apreensão como aparência de uma realidade externa aos sentidos ou essência, não existe o conhecimento discursivo (o processo discursivo é apenas dialético e é uma mera etapa), o verdadeiro conhecimento é intuitivo. O homem intui uma realidade que lhe é intrínseca e à qual é ele próprio intrínseco. São os círculos dentro de círculos.
Hegel partilha com Aristóteles a ideia de que as essências são as próprias coisas no fluxo do devir, contrariamente à ideia de Platão de que as essências precedem as coisas mesmas e que só a existência as torna reais.

3 – Terceiro Livro: A Doutrina do Conceito: a particularidade e a universalidade. A identidade. Toda a realidade parcial não é realidade. É o tipo de contradição mais abstracto. A individualidade resulta de características que são únicas ou particulares, de características partilhadas ou universais, de um emaranhado de influências e relações. 

O julgamento sobre o que é um conceito. Contra Kant, Hegel não admite um númeno desprovido de conteúdo contra um fenómeno concreto, mas sim a realidade dentro da própria mente conhecedora. As antinomias de Kant quanto ao conhecimento não científico, i.e., como dizia Raskolnikov, a um argumento pode opor-se sempre outro argumento, estão resolvidas em Hegel: a realidade é ela própria “antinomínica”, i.e., contraditória.
O conhecimento não é mais do que um processo de produção de imagens – representação – até à verdade ela mesma (como exposto na Fenomenologia). E o que é a verdade? A verdade é o pensamento puro, o pensamento que se pensa a si mesmo. Não se pode representar com imagens.



As repercussões da filosofia hegeliana foram enormes, directa ou indirectamente, na sociedade moderna: o tudo é relativo para o relativismo, o tudo é contraditório para a teoria psicanalítica, o tudo é mudança e progresso para o evolucionismo. A nossa sociedade está ainda na sombra de Hegel e de Marx, no desprezo pelo particular, pelo homem concreto, na visualização do Estado – agora o Estado transnacional – como entidade máxima objectiva, no antropocentrismo, na crença num progresso virtuoso, no apagamento das fronteiras éticas, na manipulação da linguagem esvaziando-a do seu valor significante relativamente ao significado absoluto, como a verdade, a bondade ou a moral. O mesmo se pode dizer da sua concepção do ser. Miguel de Unamuno definiu bem a resolução do dilema: “Todo o panteísmo é apenas um ateísmo mal disfarçado e às vezes nem isso”. Unamuno, O Sentimento Trágico da Vida.





(Esta canção lembra muito a filosofia de Hegel e o delírio deísta: a Terra explodiu e nós encontramo-nos unidos pela cabeça, imersos numa gelatina viscosa, a tentar tomar consciência da nossa existência miserável).


António Campos




1 Tudo aquilo que nos circunda pode ser pensado como exemplo da dialética. Nós sabemos que o todo finito, ao invés de ser termo fixo e último, é mutável e transeunte; isso nada mais é do que a dialética do finito, mediante a qual o finito, enquanto em si, é diferente de si, sendo impelido também para além daquilo que é imediatamente e transformando-se no seu oposto." (A semente deve transformar-se no seu oposto para tornar-se broto, ou seja, deve morrer como semente; a criança deve morrer como tal e transformar-se no seu oposto para tornar-se adulto, e assim por diante). O negativo que emerge do momento dialético, em geral, consiste na "falta" que cada um dos opostos revela quando se defronta com o outro. Mas é exactamente essa "falta" que se revela como a mola que impele, para além da oposição, para uma síntese superior, que é o momento especulativo, ou seja, o momento culminante do processo dialético

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(Portanto, se se trata de uma “falta”, não é lícito concluir que se trata de opostos, mas de idênticos complementares; por outro lado um adulto não é oposto de uma criança, é o mesmo ser com absoluta continuidade. Não existe ruptura ou dupla personalidade entre o eu-adulto e o eu-criança, trata-se do mesmo ser e não de um ser-outro, porque tecnicamente o presente não existe, ele é sempre um fragmento da régua do tempo que envolve algo do passado. Por outro lado é verdade que a semente morre mas não origina nenhum oposto nem nenhum ser-outro; ela origina o ser contido no seu ADN).


2 A "proposição especulativa", deve ser tal de modo a não pressupor a distinção rígida entre sujeito e predicado e, portanto, por assim dizer, deve ser plástica. O "é" da conjunção, então, expressará o movimento dialético com que o sujeito se translada ao predicado (em certo sentido, na proposição especulativa, tira-se e supera-se a diferença entre sujeito e predicado). "Esse movimento é o movimento dialético da própria proposição", diz Hegel. E ainda: "Só a enunciação do próprio movimento é a representação especulativa".


Vejamos um exemplo. Quando dizemos que "o real é racional'' em sentido hegeliano (especulativo), não entendemos (como na velha lógica) que o real é o sujeito estável consolidado (substância) e que o racional é o predicado (ou seja, o acidente ou atributo daquela substância), mas, ao contrário, que "o universal expressa o sentido do real". Portanto, o sujeito passa para o próprio predicado (e vice-versa). A proposição em sentido especulativo diria que o real se resume no racional e, desse modo, o predicado torna-se elemento tão essencial da proposição quanto o sujeito. Aliás, na proposição especulativa sujeito e predicado permutam as partes de modo a constituir justamente uma identidade dinâmica. 
De fato, Hegel, assim formula a proposição mencionada acima: "Aquilo que é real é racional; aquilo que é racional é real", de sorte que aquilo que antes era sujeito se torna predicado, e vice-versa (a proposição reduplica-se dialeticamente). Em suma, a proposição da velha lógica permanece encerrada nos limites da rigidez e da finitude do intelecto. A "proposição especulativa", ao contrário, é própria da razão que supera aquela rigidez, é uma proposição que deve expressar o movimento dialético e, portanto, é estruturalmente dinâmica, como também são dinâmicos a realidade que ela expressa e o pensamento que a formula.



(Tanto dinamismo apenas para chegar à estranha conclusão de que tudo depende da identidade entre a identidade e a não identidade. Difícil? O que significa é que o ponto de chegada tem que ser um e um apenas: a identidade entre o universal (a identidade) e o particular (a não identidade). É a alma da colmeia oriental, a roda, o determinismo, e a porta de Bradenburgo é a sua entrada no ocidente. O homem é escravo da mente colectiva e do destino: o deísmo).