sábado, 21 de junho de 2014

O Liberalismo de Locke



Propriedade

Os seus princípios económicos mais interessantes dizem respeito ao valor e à propriedade: A Teoria do Valor do Trabalho e a Teoria da Propriedade do Trabalho. Por um lado, Locke considera que os bens apenas têm valor quando sobre eles é efectuado trabalho humano e que é exactamente o trabalho sobre eles exercido, i.e., a manufactura, que concede o direito de propriedade. Isso significa que os recursos naturais não só têm menor valor, como conferem um menor direito de propriedade. O direito de propriedade é um direito natural legítimo e decorre directamente do trabalho: “Se trabalhamos para produzir algo e, ao fazê-lo, não prejudicarmos ninguém, então temos direito aos frutos do nosso trabalho e podemos dispor deles como quisermos.”




Por outro lado, Locke afirma que o direito de propriedade precede a constituição de qualquer forma de governo e, por conseguinte, nenhum governo tem o direito de dispor arbitrariamente do direito de propriedade dos cidadãos (embora o reinado de Guilherme III se caracterizasse por uma das épocas em que mais impostos foram lançados sobre o povo inglês, sob a égide do Parlamento, controlado por um punhado de famílias influentes): “Uma sociedade desenvolve-se com base em transacções voluntárias independentes do governo.” Claro que esta afirmação motivaria as críticas de Marx ao seu trabalho.

Para Locke existem limites ao direito de propriedade que estão relacionados com a possibilidade do seu uso: “Uma propriedade sem uso é um desperdício e uma ofensa à natureza.” No entanto, se a acumulação de riqueza for convertida em dinheiro ou aplicações, já não existem limites à acumulação de propriedade. Vemos aqui um ataque velado aos proprietários da terra e uma defesa dos burgueses, mercadores e financeiros, que seriam o sustentáculo do Parlamento. A consequência deste pensamento estendeu-se até ao nosso tempo, com os mercados financeiros, as offshores, as multinacionais, a existência de uma massa monetária mundial tão artificial que ultrapassa múltiplas vezes a propriedade, o património real de cada país.



Valor



A sua teoria geral de valor e preço resume-se à lei da oferta e da procura e foi formulada em 1691. A oferta é quantidade e a procura é taxa; e elas estão inversamente relacionadas. Para a oferta, os bens devem possuir valor, serem transaccionáveis e relativamente escassos. Para a procura, os bens devem proporcionar bem-estar ou produzir um meio de rendimento. Quer a terra, quer o dinheiro, se enquadram nesta categoria, uma pelo que produz e o outro pelo potencial de transacção, pelo valor do aforro e pelas taxas que proporciona.



A sua teoria monetária baseia-se no livro do Eclesiastes, 10:19: “…E o dinheiro serve para tudo”. Uma taxa de juro (para fazer funcionar o sistema financeiro) é sempre satisfatória ou mais do que suficiente, portanto a procura de dinheiro vai ser sempre regulada pela quantidade disponível. Outros pensamentos económicos de relevo englobam a sua crença em que um país com uma balança de transacções correntes negativa ficará atrasado irreversivelmente relativamente a outros países, que o ouro e a prata têm mais valor nas transacções internacionais do que o papel-moeda, uma vez que este depende do valor que o país emissor lhe atribuir.






Política e Ética


Para Locke a humanidade começou num estado natural, embora o homem não fosse um animal como os outros porque Deus o tinha dotado de raciocínio e consciência. O que impele um homem a agir é o mal-estar pela necessidade de um bem ausente; quando tal bem é alcançado, o mal-estar transforma-se em alívio. Locke não considera a liberdade assente no livre-arbítrio, concepção metafísica alheia ao seu empirismo. A liberdade consiste, não no querer, mas no agir ou abster-se da acção. Trata-se de uma ética utilitarista, em que o bem e o mal morais consistem apenas no prazer ou na dor, embora na sua base esteja a lei divina revelada, acessível à razão humana. Mas a porta ficou aberta para o marquês de Sade (1740-1814) que diria que a satisfação ou prazer do Eu é o maior bem e que a vida é um fenómeno estético; ou para Nietzsche que diria, na sua Gaia Ciência, que o maior bem é a maximização do prazer com a minoração da dor e que a vida é um fenómeno estético, para além do bem e do mal.




Para Locke, o contrato social não existia entre governo e governados, mas entre homens livres que se juntavam livremente para fundar as instituições. Contrariamente a Hobbes, Locke pensa que os governados devem manter os seus direitos individuais e que a salvaguarda desses direitos – a vida, a liberdade e a propriedade – deve ser o único objectivo do governo. Portanto este rumo iluminista inglês que defende a propriedade e o direito do proprietário seria bastante diferente do rumo iluminista francês que defenderia a maioria e o ponto de vista da maioria sobre os valores individuais. O contrato social em Inglaterra passaria a defender os direitos do indivíduo face à maioria; em França passaria a usar-se a maioria contra o indivíduo.

Esta diferença de mentalidade tem repercussões decisivas no direito e no significado do indivíduo face ao Estado em cada um dos lados do Canal. Ela é também a responsável pelo tipo diferente de organização social, de distribuição da propriedade, assinalando uma mentalidade de ruptura com o absolutismo, mas com regresso à monarquia, num processo de recusa de outra experiência republicana, após o desastre de Cromwell, “the butcher”. Talvez por isso a experiência socialista totalitária nunca apaixonou o povo inglês, quedando confinada aos sindicatos e a um socialismo parlamentar, por vezes radical, mas que imediatamente suavizava quando era chamado a desempenhar o poder executivo. Curiosamente, nos Estados Unidos vingou o sistema misto, de liberalismo económico e um Estado omnipresente, militar e moral. E a moral do Estado americano evoluiu para uma divinização do direito das minorias que controlam os valores da maioria, sob forma de imperativo civilizacional. É precisamente a outra face do liberalismo que conduziu a este patamar...E é uma trágica contradição que o país onde a vontade da maioria foi consagrada pelo contrato social, é o mesmo cujos intelectuais, odiando o mundo anglo-saxónico, abraçaram efusivamente o seu liberalismo moral. Compreende-se o declínio e a deriva cultural da França...  



   

A monarquia não se fundamenta no direito divino. Locke diz que tal fundamentação não se encontra nas escrituras nem nos antigos padres. Do ponto de vista político, defenderia a primazia do Parlamento sobre o Rei e a separação de poderes entre a Igreja e o Estado: “Não sigam as autoridades irreflectidamente, sejam elas intelectuais, políticas ou religiosas. E não sigam irreflectidamente tradições ou convenções sociais. Pensem por vós mesmos. Observem os factos e tentem basear as vossas opiniões e o vosso comportamento no modo como as coisas realmente são.”



Percebemos a influência que teve em Rousseau e Voltaire e compreendemos que é impossível desligar o liberalismo político do liberalismo ético - o romantismo, o egoísmo e o existencialismo, o movimento decadentista - do qual o impressionismo viria a ser a sua expressão estética. O suceder de objectos na mente humana leva-nos à conclusão de que não se tratam de verdadeiros objectos, mas de impressões, gravadas na mente de cada um. Se só recebemos sensações do mundo exterior, então devemos render-nos a essas sensações, mesmo que elas não conduzam a nenhuma verdade objectiva. Se tudo reside no sentir, então devemos sentir com intensidade, reduzir a nossa vida a ter o máximo de sensações no tempo que temos disponível.



No fundo, o que está aqui em causa, são as consequências políticas da sua teoria do conhecimento. Se cada homem é uma tábua rasa e o seu património resulta apenas da sua experiência concreta e particular, qual é o homem que pode ter uma experiência tão abrangente que englobe em si mesmo todas as experiências de todos os homens? Qual é o homem que é uma tábua plena? É evidente que o relativismo é a consequência ética e política da sua teoria do conhecimento.



Como a realidade depende da percepção de cada um, não pode existir uma visão comum. Isto termina uma sociedade partilhada por valores e aspirações comuns. Uma vez que a realidade está sempre a mudar com as nossas distintas percepções, com os nossos pontos de vista cambiantes, a necessidade de romance que assenta no compromisso e na partilha, nunca é preenchida e as relações humanas passam a ser um jogo ou uma farsa utilitarista. Perdido o comum e permanente, procura-se o exótico e o ordinário. Uma vez que nos encontramos sobre a ameaça de uma morte inevitável, disfrutemos o momento experimentando todo o tipo de prazeres, libertando-nos da moral, “para além do bem e do mal”. Racionalizar a felicidade deste modo, superficializa-a, destruindo-a. Desse modo a procura da felicidade pelo vício nunca encontrará o seu termo.









Tolerância



A sua crença na tolerância, que resulta da sua teoria do conhecimento, leva-o a considerar errado e moralmente incorrecto que as autoridades políticas e religiosas imponham as suas crenças: “Onde está o homem que possui provas incontestáveis da verdade de tudo o que detém ou da falsidade do que condena, ou que pode dizer que examinou a fundo as suas opiniões ou as dos outros?” Lembra a máxima calvinista: “Um Deus sem ira que colocou no mundo um homem sem pecado para um reino sem julgamento segundo as normas de um Cristo sem a cruz.” O liberalismo que resulta das ideias de Locke não poderia deixar de ter influência nos valores éticos e é compreensível que os movimentos libertários reclamem a paternidade em Locke.



No entanto existe uma enorme hipocrisia na tolerância de Locke:


- Ela não era universal:

"A maior parte da humanidade não é propriamente capaz de vida intelectual e moral, porque está destinada a trabalhar, escravizada pela sua condição medíocre, cuja vida é consumida apenas pelas suas necessidades de sobrevivência."

"O patrão tem o direito de impor ao escravo um domínio absoluto e o poder legislativo da vida e da morte." 

"Os filhos dos pobres devem ser separados dos seus pais e mandados trabalhar a partir dos três anos de idade."

- Ela excluía o homem primitivo, que “não estava ligado ao resto da humanidade no uso do dinheiro.” Esta ideia forneceu a base para a extorsão de terras e o genocídio que viriam a ser perpetradas na América do Norte.

- Ela também excluía os católicos, “serpentes das quais nunca se conseguiria que abrissem mão de seu veneno com um tratamento gentil.” Citemos Locke para notarmos melhor a sua contradição: "A tolerância para com aqueles que discordam dos outros em matéria de religião é algo de tal forma consoante com o Evangelho e com a razão, que é monstruoso existirem homens cegos a tanta luz."

A liberdade e a tolerância limitava-se ao estreito círculo dos ricos e dos filósofos como Locke e Voltaire que ganhavam dinheiro com o tráfico de escravos em África e na América Latina.

A Voltaire agradou este tipo de “tolerância” ao afirmar que “a tolerância é para os franceses um artigo de importação.” Mas já Bartolomeu de las Casas (que viajou com Colombo e baptizou os primeiros indígenas) e Montaigne afirmavam que não viam nessas populações indígenas “nada de bárbaro ou de selvagem, a menos que alguém denomine de bárbaro aquilo que não é de seu costume.” De las Casas receberia elogios públicos do Papa Emérito Bento XVI num dos seus livros.







Religião





Filho de puritanos, Locke tornou-se calvinista (determinismo, negação do livre-arbítrio e da possibilidade de modificação do destino das almas pelas obras, pelo arrependimento e pela oração). As alegações históricas de deísmo (tudo é Deus, incluindo nós e o restante universo) é falsa, tal como a alegação de arianismo (Jesus Cristo não é Deus; é apenas um homem virtuoso ou profeta). É o próprio Locke que recusa ser considerado deísta na famosa Carta ao Reverendíssimo Edward Stillingfleet. Na obra A Razoabilidade do Cristianismo, Locke deixa claro que fé e razão possuem âmbitos próprios. Para Locke a verdade fundamental em que devemos crer para ser considerados cristãos é a de que “Jesus Cristo é o Messias” e que “Jesus Cristo é o Filho de Deus”. Quer o mistério quer a realidade sobrenatural são claramente admitidas por Locke: “ Gostaria que se pudesse dizer que na Sagrada Escritura não existem mistérios, mas devo admitir que para mim existem e temo que sempre existirão.”


Não negava a realidade do mal, e embora defendesse a tolerância – entendemos agora o que realmente significa -, defendia a pena capital para crimes graves. Acreditava que todo o conteúdo da bíblia era de acordo com a razão humana. Apesar de defender limites ao Estado, defendia que as autoridades não deviam tolerar o ateísmo, porque a negação de Deus minaria a ordem social e conduziria ao caos – Deus era uma espécie de conveniência política. Quer a noção de igualdade dos sexos, quer a de a legitimidade de um governo necessitar do consentimento dos governados, quer a da noção de criação, foram retiradas da bíblia, do argumento ontológico de Santo Anselmo e da doutrina teológica da Imago Dei e causaram enorme influência na Declaração de Independência da América: “Todos os homens foram criados iguais…”


O problema…era considerá-los “homens”…








Crítica ao pensamento de Locke:

1 – O liberalismo e o movimento decadentista: A moral hedonista tem uma refutação simples: gostaria que fizessem à sua filha, à sua mulher ou a si mesmo, aquilo que se propõe fazer aos outros?

Se a resposta a esta pergunta for não mas o comportamento for dissonante, essa pessoa não confere a todo e qualquer ser humano a mesma dignidade: essa pessoa move-se em círculos concêntricos, em que o lugar central é ocupado pelo seu próprio ego e os outros seres humanos vão sendo distribuídos por círculos tanto mais externos quanto menor afinidade o indivíduo em questão tiver por eles, seja essa afinidade determinada pelo interesse, seja pela afectividade. É este o pensar "do mundo" como descrito na bíblia. É um pensar exclusivamente humano. É a filosofia dos partidos políticos e das sociedades secretas. Dentro deste contexto podem existir duas posições: a preocupação ética, que reconhece o bem e o mal, onde existe sempre um lugar para o reconhecimento de má conduta - definida como aquela que não procura o bem comum - ou o indiferentismo, que não reconhece culpa e que portanto não cede lugar ao arrependimento e mudança de conduta.

Se a resposta for sim, ao modo de JP Sartre e Simone de Beauvoir, a resposta existencialista, então não existe nenhuma possibilidade de compromisso nem de partilha. Na verdade Simone de Beauvoir fez jus à afirmação de seu pai de que pensava como um homem. No seu livro O Segundo Sexo, de Beauvoir fornece a argumentação para a ideologia de género: “Nenhuma mulher nasce mulher, torna-se mulher.” Na base desta afirmação encontra-se a convicção existencialista errada de que apenas no caso humano a existência precede a essência. Ou seja, num objecto simples inanimado, como um martelo, a essência precede a existência, i.e., alguém pensou e fabricou um objecto que se comporta ou serve de martelo. Mas já num objecto complexo como um homem, ninguém o pensou, não tem finalidade, nem se ajusta a qualquer ideia prévia de “homem”.

Este modo de pensar é tão inimigo do próprio homem que não existem muitas pontes de compromisso. Na verdade, ela assemelha-se muito àquilo que Chesterton denomina por diabolismo no Orm de The Wild Knight e no Diabolista de Tremendas Trivialidades. O modo como terminaram é exactamente a prova de que não existe muitas vezes um ponto de retorno, porque a afirmação “Àquilo a que tu chamas mal eu chamo bem” não é passível de compromisso. O compromisso seria a participação na decadência social e moral. A negação daquilo que é geralmente considerado bem e o desejo do mal, não é apenas uma reversão ética; é um ataque à natureza da realidade espiritual.

2 – A tolerância: Em si positiva, enferma de um vício fundamental, presente também no kantismo, no hegelismo, no marxismo, no nietzschismo: nem todos os homens são “homens”.

3 – O liberalismo económico: Ao ligar o capital ao trabalho, oculta o facto de que grande parte do capital não se origina do trabalho, mas de movimentos de capitais. Dessa forma, o capital adquire um carácter de legitimidade sacra, porque ligado ao esforço, à honestidade e ao trabalho. Todo o capital. Ora, sabemos perfeitamente que existem muitos modos iníquos de adquirir capital: ilegais, legais, legais mas imorais, ilegais onde não se reúne prova suficiente para que as instituições de justiça os considerem desse modo ou sancionados por incidentes processuais e manobras dilatórias.

Este modo de ligar o capital ao trabalho tem outra consequência: a consideração de que o capital é sinónimo de virtude, que a falta de dinheiro é um castigo divino para indivíduos indigentes ou iníquos. Se assim fosse, a caridade não teria qualquer valor, um padre seria um parasita, Cristo um vadio. Pois bem, foi o próprio Cristo quem disse que “nem só de pão vive o homem”. 

O livro de Job é outro exemplo: os amigos de Job não compreendem o mistério do mal, para eles tudo tem uma explicação. Se Job passa por um grande infortúnio, então ele seguramente deverá ter praticado a iniquidade. É exactamente este pessimismo ou determinismo que Job recusa. Job repetidamente afirma: Acontecem coisas más a homens bons, a vida encerra um componente racional e um componente de mistério. Locke é como os amigos de Job. Vai buscar ao Eclesiastes para se justificar uma frase que desmente o próprio Cristo: “O dinheiro serve para tudo”. É o que resulta da interpretação literal da Escritura…


Locke permanece tão contemporâneo como o era no século XVII. Não andámos assim tanto…

Na verdade, a Locke, a quem devemos um poderoso argumento ontológico, a ideia de limite para o poder do governo, o respeito pela propriedade e pelo indivíduo face ao Estado, a ideia de tolerância, pode apontar-se o mesmo que se pode  apontar a tantos católicos:

É precisamente quando pensamos que somos melhores que nos tornamos piores.




António Campos

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