quarta-feira, 4 de junho de 2014

A Tábua Rasa



“Eu nada sei sobre como penso, mas eu sei que eu nunca penso excepto por sugestão dos meus sentidos (eu sei que só penso por meio dos sentidos).”



TEORIA DO CONHECIMENTO

Quais os limites do que é inteligível para os humanos? Como vimos com Kant, os filósofos
medievais consideravam que os limites para o conhecimento eram estabelecidos pelos limites do que existe, mesmo que a razão humana não tivesse a capacidade de tudo compreender ou de tudo conhecer. Assim, existiria uma diferença entre os limites do que existe e daquilo que se podia conhecer. Tratava-se de assumir que o conhecimento humano, ainda que sobre o eu ou o outro, seria sempre um conhecimento parcial.

O racionalismo continental, de Descartes a Leibnitz, era um racionalismo dogmático. Parte de ideias para chegar a conceitos ou verdades, mas nunca se interroga num ponto: o que é a própria razão e qual o seu funcionamento, i.e., qual o modo como elabora as ideias?

Esta é precisamente a questão que se colocam outros filósofos, do outro lado do canal, os empiristas ingleses. Eles próprios também racionalistas – atitude geral na filosofia moderna – uma vez que pretendem encontrar a verdade numa análise da razão e supõem que a realidade em si possui uma estrutura racional: “A razão deve ser o nosso juiz último e o nosso guia em cada coisa”, dizia Locke. Não se aplicam a uma análise das ideias que a razão já possui; em vez disso procuram saber de que elementos iniciais parte. Para eles, a razão não é um depósito de ideias, mas uma máquina de as fabricar. É a estrutura dessa máquina que pretendem descobrir, para se conhecer a génese da realidade: “O primeiro passo é fazer uma inspecção do nosso intelecto, examinar os nossos poderes e verificar para que coisas eles estão aptos.” 

Locke representa bem a paixão do povo britânico pelas coisas concretas, práticas e eficazes; por outro lado, representa a aversão britânica pelas abstracções, princípios ou fórmulas que o afastem da realidade viva e operante, característica dos seus pares continentais. O povo britânico herdou o génio político do Império Romano, mestre na incorporação mais ou menos pacífica de povos, a continuidade secular de tradição política e a eficácia na administração e na justiça.

Locke partilha com Descartes o conceito de ideia como pensamento e não como forma ontológica ou essência, mas rompe com o método proposto por Descartes, que validava a experiência exterior a partir do conteúdo da nossa consciência, uma vez que não aceita que existam ideias inatas, como as ideias de Deus ou as ideias matemáticas: “O domínio do homem sobre esse pequeno mundo do seu intelecto é mais ou menos o mesmo que ele tem sobre o grande mundo das coisas visíveis, onde o seu poder, mesmo que exercido com arte e mestria, nada mais consegue além de compor e dividir os materiais que estão à sua disposição, mas nada pode fazer para fabricar a mínima partícula de matéria nova ou para destruir um átomo sequer daquela que já existe.”



Para Locke, tudo o que nos chega depende do que é captado pelos sentidos. Os nossos sentidos são a única ligação directa entre nós e a realidade exterior. No fundo, a nossa consciência exprime uma profusão de imagens sensoriais e de recordações delas derivadas. Se Descartes poderia dizer “eu sou só mente”, Locke poderia afirmar “eu sou só percepção sensorial”. Tudo o que a mente elabora que não se relacione com a experiência do mundo exterior é ficção, não é realidade: “Gostaria que alguém tentasse imaginar um gosto que nunca tenha afectado o seu paladar, ou fazer uma ideia de algum perfume cujo odor nunca tenha sentido; quando puder fazê-lo, eu estarei pronto a concluir que um cego pode ter ideias das cores e um surdo noções distintas dos sons.” Locke vai mais longe e afirma que todo o homem nasce com a mente em branco onde vão ser inscritas progressivamente as imagens sensoriais, as suas associações e recordações: “Não vejo portanto nenhuma razão para crer que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham fornecido ideias nas quais pensar.”

O homem é uma tábua rasa ao nascer.

Locke desenterra um lema que os escolásticos aristotélicos usavam contra os escolásticos platónicos: Nada está no nosso entendimento que antes não tenha estado nos sentidos. A diferença reside em que, contrariamente aos aristotélicos, para Locke as sensações não apresentam qualquer distinção das ideias por si geradas: são a mesma coisa. Ideia significa sensação, recordação, ideia, percepção e imagem, sem qualquer distinção. As ideias simples correspondem às sensações e estão mais próximas da realidade; as ideias complexas resultam da combinação de ideias simples, são subjectivas porque criadas na nossa mente e não têm um equivalente concreto, são um paradigma de si próprias. Para Locke o espírito antes de receber uma sensação não é nada e no momento em que receba a primeira sensação ele próprio se confunde com a própria sensação: Eu sou o som da harpa ou eu sou o odor da gardénia.






Se toda a gente vem em branco, então ninguém é superior a ninguém. Aquilo que alguém virá a ser depende inteiramente da forma como for educado. Claro que estas ideias tiveram enorme repercussão em França, sobretudo nos enciclopedistas, levando a acreditar que as massas podiam ser libertadas da sujeição social por meio da educação em pé de igualdade.



Qualidades – O poder que as coisas possuem de produzir ideias em nós

Para Locke, a filosofia fica reduzida à análise ou observação do espírito e da sua funcionalidade, obedecendo ao princípio geral racionalista de deduzir o ser a partir da realidade exterior. Para isso divide as qualidades do objecto em primárias e secundárias:

Qualidades primárias de um objecto são aquelas que não variam com o observador, se apresentam a vários sentidos e dizem respeito à ciência: comprimento, largura, altura, posição no espaço, velocidade, etc.

Qualidades secundárias são aquelas que se apresentam a um único sentido, resultam da interacção particular entre um dado sujeito e o objecto e que poderiam apresentar variabilidade individual: cor, odor, sabor, etc.



Limites do Conhecimento


Definido um objecto a partir das sensações que desperta no sujeito, não existe qualquer forma de saber a razão pela qual o objecto se comporta dessa maneira; ou seja, sabemos que sensações o objecto nos desperta mas não temos possibilidade de saber o que é o objecto. O objecto em si é “algo que não sei o que é”, como disse o próprio Locke, apenas sei quais são as suas características ou propriedades captadas pelos meus sentidos e que estão presentes na minha consciência. Mas o que se aplica ao objecto também se aplica ao sujeito. O que sabemos sobre nós depende apenas do conteúdo das nossas experiências, logo o eu é desconhecido, inacessível. Portanto, o conhecimento depende de transacções entre entidades misteriosas. 



Locke concluiu que não adianta pensar no que está para além do nosso entendimento, porque não existe forma de termos acesso a esse conhecimento. O limite do nosso conhecimento pode ser extrapolado por meio do exame das nossas próprias capacidades. Se existe ou não algo para além de nós, isso é completamente irrelevante porque não temos meios de o verificar. Mas isso não significa que duvidemos de que podemos conhecer ou pôr tudo em dúvida e ignorar todo o conhecimento, apenas porque algumas coisas podem não ser compreendidas. Conhecendo os limites do nosso próprio conhecimento, com muito mais confiança nos podemos entregar à tarefa de conhecer: “É de extrema importância para o marinheiro conhecer o comprimento das suas cordas ainda que elas não possam sondar a profundidade dos oceanos.”
                                         
Uma vez que Locke não concordava com Descartes de que o nosso conhecimento científico deriva da lógica dedutiva a partir de premissas indubitáveis, também não acreditava que a precisão do nosso conhecimento fosse de natureza exacta como a matemática. Locke deixa um espaço para o erro: generalizamos pela experiência – um processo conhecido como indução – mas por vezes as nossas generalizações estão erradas e precisamos contar com isso. Por isso, mesmo o conhecimento mais cuidadosamente construído, edificado sobre a observação, não é absolutamente certo; é apenas provável. Pode mesmo ser errado. Portanto, se queremos manter o princípio de que as nossas crenças sobre as coisas são baseadas em provas, devemos estar disponíveis para modificar as nossas crenças à luz de evidências variáveis. Este é o mote para toda a teoria política de Locke, o fundador do liberalismo. 

Compreende-se a influência que este modo de pensar exerceu em Hume, Kant, Schopenhauer, Russell, Wittgenstein e Popper.


As consequências do empirismo são dramáticas:


1 - O nominalismo:


Apenas existe o concreto e o sensível, a natureza é dominada pela experiência. As ideias são alterações que as sensações sofrem na nossa mente e não correspondem à realidade. O conhecimento exaustivo da natureza adquire-se apenas por experiência porque não existem ideias inatas nem os nossos conceitos representam nada de real e estável para poder deduzir a partir deles uma verdadeira ciência. Portanto, Locke continua a tradição nominalista inglesa de Guilherme de Ockam: As ideias complexas são construções do nosso intelecto e a essência nominal (por exemplo a bicicleta) constrói-se na nossa cabeça a partir da experiência que possuímos com os objectos particulares com uma determinada característica (por exemplo aquilo que as diferentes bicicletas possuem em comum); quanto à essência real eu nada sei, porque o geral e o universal não pertencem à natureza real das coisas e são apenas invenções do intelecto. Recorde-se que para a metafísica clássica a abstracção era o processo natural em que se capta a essência das coisas. Opõe-se, por conseguinte, ao realismo. São nominalistas os neo-espinosistas, os neo-kantianos, os neo-positivistas, os pragmatistas e os idealistas.


2 – A Psicologia Experimental:


É possível estudar a vida do espírito pela mesma via experimental e matemática com que as ciências físicas estudam a natureza. Se a mente apenas contém sensações que se associam, compõem ou dividem, a psicologia pode estudar a mente humana do mesmo modo como as ciências naturais estudam os átomos e as moléculas. A psicologia seria uma projecção da física e da matemática: é a psicologia experimental ou behaviorismo.


3 – O Liberalismo:

Se as ideias resultam da experiência de cada espírito concreto, elas não têm uma realidade nem uma validade objectivas. Portanto, não se podem impor a ninguém. Não devem erigir-se como normas morais nem como normas ou princípios da governação do Estado. Ao Estado cabe salvaguardar as liberdades individuais. As normas para os que governam devem emanar da vontade da maioria, empiricamente consultada por meio do sufrágio.


4 – O idealismo de Berkeley:

Se a cor, o cheiro, o sabor, não existem fora de mim, são reacções do meu espírito, então nada me garante que exista uma realidade exterior para as qualidades primárias. O nosso espírito apenas lida com sensações ou ideias que parecem ser a representação do mundo exterior. No entanto, esse mundo exterior nunca ninguém o viu porque nunca ninguém saiu da sua mente. “Eu nunca transporei os limites do meu próprio conhecimento para o comprovar.” O ser das coisas esgota-se em serem percebidas: “Quando deixo de as perceber elas deixam de existir, porque o seu ser não é mais do que a percepção de que delas tenho.” Este tipo de idealismo que parte do espírito individual designa-se por idealismo psicológico, por contraponto ao idealismo lógico, o idealismo alemão, que também vê a realidade apenas como criação do espírito, mas de um espírito humano ou razão em geral, que é comum a todos os homens.


5 – O cepticismo ou niilismo de Hume:

Locke afirmou que apenas os dados sensíveis participam da realidade; Berkeley negou a objectividade do conhecimento. Hume vai mais longe: ele afirma que nunca ninguém viu aquilo a que chamamos substância ou o que conhecemos como causalidade, nem disso teve qualquer género de percepção sensível. Como posso concluir pela existência de bicicleta pela combinação das suas qualidades sensíveis, quando ela varia de tamanho, de forma, de cor e de odor? Como posso agregar coisas que variam tanto sobre uma designação comum de bicicleta? Com a causalidade é a mesma coisa: como posso concluir que o calor dilata os corpos se eu nunca vi a relação, apenas a deduzi mentalmente? A única coisa que eu vejo é que quando há calor, os corpos metálicos dilatam; mas a relação eu não a vejo! Para Hume, nem a ideia de substância nem a de causalidade têm um fundamento real. Para Hume, Berkeley excedeu-se ao considerar o eu uma substância relativamente aos fenómenos psíquicos e que os fenómenos psíquicos reconhecem em mim a sua causa. Com rigor, apenas se podem reconhecer os fenómenos ou aparições, nunca a sua relação ou causalidade. Com Berkeley dissolveu-se a realidade; com Hume dissolveu-se o eu. O empirismo ou racionalismo empírico inglês, seguindo as pisadas do racionalismo lógico continental, aplicou uma dura crítica às construções metafísicas do racionalismo continental. O seu teor destrutivo lançou as bases para um sistema que combine ambos e tente ultrapassar as objecções internas. Como já vimos, foi essa a obra de Kant.


6 – Ninguém contesta que a aprendizagem decorre da experiência. De outro modo a vida seria um absurdo e a finalidade dela esgotava-se. Mas Locke não teve filhos. Por vezes são estas coisas comuns que mantêm o equilíbrio nos homens. O segredo da racionalidade, tal como o segredo da natureza, reside sempre no equilíbrio. Não devem existir muitos pais que sejam educadores dos seus filhos (até porque em Inglaterra muitas vezes os pais apenas pagam a educação dos seus filhos) que não se apercebam de grande variabilidade na sua natureza, carácter e temperamento, apesar de o meio familiar ser o mesmo ou muito semelhante.

Sabemos que Bacon (que escrevia muito sobre ciência mas não era cientista) e Newton exerceram grande influência em Locke. Socorramo-nos então da ciência do nosso tempo. Para além da experiência existe o património genético e a epigenética. Em grande parte definem em que medida a experiência forma o indivíduo. É elementar afirmar que não nascem Mozarts todos os dias.

Existe ainda um outro problema. Em que medida as ideias de um empirista resultam unicamente da experiência e não são, elas próprias, elaborações da própria mente? O conhecimento de que o conhecimento só pode ser adquirido por experiência é um conhecimento. O uso do princípio da causalidade e da não contradição ou exclusão do absurdo que Locke usou para provar a existência de Deus (de que nos ocuparemos mais tarde) resultam inteiramente do próprio funcionamento da razão e não da experiência. Eu tenho que ter um eu consciente dentro de mim que escolhe experiências e que as escreve na tal tábula que não será completamente rasa. Numa palavra, será esse eu consciente que me permite maior ou menor inteligibilidade do objecto em estudo. O grau de inteligibilidade na apreensão de objectos de estudo, poderá, ela sim, incrementar por experiência; i.e., não só o eu inteligível não é passivo e intervém na experiência, como a experiência modifica esse eu inteligível. Essa certeza de mim mesmo que precede o pensamento, afirmada por Santo Agostinho, foi também defendida por Locke, como veremos.



António Campos

Nota do autor: Evidentemente que o processo cognitivo é complexo. O que se encontra escrito não resulta apenas da mente de uma única pessoa. Tal como nos textos sobre Kant as discussões com a Anália e o José Carlos Domingues foram exaltadas e frenéticas, também no caso de Locke as discussões com o Deividi Pansera foram profundas e fleumáticas.




1 comentário:

  1. Muito bom o seu texto. O conhecimento é um dos grandes alavancadores da espécie humano, mesmo que podemos duvidar que seja possível ou não conhecer as coisas. Se é fácil ou não obter conhecimento. Se é bom ou não, o que podemos afirmar é que devemos buscar este conhecimento. Imagine a sociedade dos seres humanos sem conhecimento.

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