sábado, 10 de maio de 2014

O Homem Comum



Não será estranho que o escritor inglês mais conhecido como o mestre do paradoxo  
sinta fascínio por um escritor cuja popularidade reside ela própria num paradoxo: como é que Dostoiévski tem tanto sucesso em captar o coração dos seus leitores, em lhes enlevar o espírito, se lhes fala continuamente de tumulto e de revolta? A resposta só pode ser de raiz filosófica. Chesterton e Dostoiévski partilham a abordagem do homem comum e a do seu oposto, o solipsista racionalista (que pensa que o universo existe apenas dentro e a partir de si) com as suas múltiplas máscaras: o intelectual, o filantropo, o revolucionário redentor, o chefe icónico, o cínico no afecto, o prático que idolatra o dinheiro. No fundo, as duas metades do cérebro humano, em maior ou menor grau presentes em cada um de nós e na sociedade em geral.

Terminado o milénio, no século XVI, o homem ficou "livre", entregue a si próprio. Estas duas metades parecem combater entre si, sem uma aparente intervenção de uma verdade superior. É exactamente a tradução deste facto que parece caracterizar estes dois escritores. Eles não têm uma personagem principal, mas duas; por vezes mais. E insistem em que todas são, não só humanas (mesmo quando aparentemente inumanas), mas perfeitamente compreensíveis, racional ou afectivamente.


- O solipsista:


Encontramo-lo, com Doistoiévski, em Raskolnikov de Crime e Castigo, em Ivan de Os Irmãos Karamasov, em Stavróguin de Os Demónios, em O Homem Subterrâneo de Os Cadernos do Subterrâneo. Encontramo-lo, com Chesterton, em Lord Ivywood de A Taberna Errante, no professor Lúcifer de A Bola e a Cruz, em Buck de Napoleão de Notting Hill, encontramo-lo em Gregory e no professor de Worms, projecções  de G. B. Shaw, em O Homem Que Era Quinta-feira ou em Simon Wolfe de O Poeta e os Lunáticos

Mas, quer em Chesterton quer em Dostoiévski, estes solipsistas apenas triunfam por um tempo antes da ruína, ou em alternativa, encetam o caminho da conversão. Stravógin suicidou-se, o Homem Subterrâneo ficou só. Raskolnikov iniciou com Sónia uma forma de conversão, Dimitri aceitou a prisão e a conversão. 

Diz o Innocent Smith em Manalive: “Em certas épocas torna-se necessário uma outra espécie de sacerdotes, os poetas, para lembrar aos homens de que eles ainda não estão mortos. Os intelectuais entre os quais vivo nem sequer estão suficientemente vivos para recearem a morte. O homem são sabe que a vida serve para aprender como morrer, mas para estes pequenos ratos brancos a morte é a única possibilidade de aprenderem a viver”.

O solipsista é o mais louco de todos os lunáticos e o maior inimigo quer do corpo quer da alma, como a disseminação das ideologias e os massacres do século XX demonstraram, chamasse-se ele, Adolf, Vladimir, Leon, Ossip ou Mao.

Uma forma de solipsismo mais refinada, a do filantropo, intelectual burguês ou professor, é a adulação da humanidade em abstracto e a indiferença perante o indivíduo concreto. Em 1902, escrevia Chesterton na Pall Mall Magazine, num artigo chamado Vitor Hugo

"Se existe uma verdade fundamental sobre a democracia genuína, é que a democracia genuína se opõe ao conceito de multidão. A democracia genuína baseia-se fundamentalmente na existência do cidadão, e a melhor definição de “as massas populares” é a de um corpo de mil homens em que não existe um cidadão. Hugo defendeu o conceito de que a democracia girava à volta do cidadão como as religiões ancestrais giravam em torno da alma…Portanto, a sua figura mais sublime, o seu tipo de humanidade, não era nem o rei nem o republicano, mas um homem numa ilha deserta.” 

Hugo, se fosse possível, teria acrescentado: “Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem profundamente neles.”

Não será por acaso que os sofismas modernos, como o kantismo, o egoísmo, o desconstrucionismo e outras formas de solipsismo, são completamente omissos, perversos ou desdenhosos perante a maior imagem do ser humano: a mulher que é mãe.




Por seu turno, diria Dostoiévski em Os Irmãos Karamasov: "Gosto da humanidade, mas eu próprio me admiro: quanto mais gosto da humanidade em geral, menos gosto das pessoas em particular. Muitas vezes sonho com a ideia apaixonada de servir a humanidade e, se calhar, seria mesmo capaz de subir ao calvário pela humanidade, se tal fosse necessário; mas, ao mesmo tempo, sou incapaz de conviver com alguém no mesmo quarto por dois dias. Digo-o por experiência. Mal alguém fica perto de mim, logo a sua personalidade me oprime o amor-próprio e me constrange a liberdade. Sou capaz de detestar, de um dia para o outro, a melhor das pessoas: odeio este porque come devagar ao almoço, odeio aquele porque está constipado e não pára de assoar o nariz. Basta as pessoas tocarem-me ao de leve para me tornar inimigo delas. Entretanto, sempre me sucedeu que, quanto mais detestei as pessoas em particular, mais glorioso era o meu amor pela humanidade em geral.”



DO CAMINHO LARGO AO CAMINHO ESTREITO - O REGRESSO AO HOMEM COMUM


- A Conversão:


O homem comum de Chesterton e o camponês de Dostoiévski exprimem uma e mesma ideia: a conversão dos homens instruídos, pelo seu regresso à condição de homens simples. Desse ponto de vista, esta ideia de camponês ou de homem comum tem quase um sentido mitológico, uma atitude e um viver prático. É a vida prática de um dia a dia esforçado, que deixa pouco espaço à leitura, mas que afasta o homem da dúvida pela constatação do fundamental: é necessário trabalhar, o amor pelos filhos e pela mulher são a maior realidade da vida, o homem é um ser limitado, existe a morte. Os miseráveis de Vítor Hugo, os personagens de Dickens e os tipos de Dostoiévski, pelos seus dramas, sofrimentos e heroísmo, transformam a mente dos seus leitores.

Mas o que é este homem comum? Ele é um homo sciens, mera parte da natureza, tal como uma pedra, um cacto ou um camelo ou é um homo sapiens, aquele homem que na visão de Dr. Johnson ou de Milton – duas grandes influências em Chesterton – possui a experiência do Bem inteligível, a visio Dei, que está disponível e cuja busca é obrigatória e inevitável, não apenas para os místicos, especialistas ou crentes, mas para todos os homens em vários graus, desde que possuam a vontade genuína de encetar essa busca. Esta é uma atitude que pode perfeitamente ser adoptada por um intelectual ou um homem rico se fizer a viagem de volta ao mais importante da vida: as coisas primeiras.


- O Caminho Estreito:



O caminho da conversão de Dostoiévski inicia-se na história do camponês Marey e obtém o reconhecimento no seu epitáfio, a parábola do grão de trigo, que é contada em Jo 12:24: “Se o grão de trigo lançado à terra não morrer, não dá fruto.” Chesterton e Dostoiévski várias vezes tomaram o paradigma do livro de Job: o Deus que não responde às nossas perguntas, mas tem, Ele próprio, perguntas para as quais não encontramos respostas. Ambos vivem assombrados pela sensação de que, para o Criador do Universo, a dúvida ou a capacidade de duvidar é um atributo ainda maior do que o conhecimento da própria verdade. Ele próprio, o guardião do livre-arbítrio humano, à custa do seu próprio sofrimento.





Ambos, Chesterton e Dostoiévski, usam o exercício da dúvida para conduzir o homem a Cristo. A referência é sempre indirecta, não ritual, profana. Depois vem o enlevo do coração e o homem comum de Chesterton ou o camponês de Dostoiévski são a voz do intelectual convertido, do professor, do sábio, que se tornou um homem comum. Afinal, esta é a última condição, insuspeitada, de ser acima de sábio, flutuando, livre do peso do orgulho, do lastro da auto-suficiência.

Esta dualidade da alma humana, expressa por estes dois escritores, não é produto da imaginação, uma vez que ela teve uma realização concreta, por meio da conversão, em muitos inimigos do espírito. Foi o caso da conversão tardia de Voltaire ou de um grande escarnecedor de Chesterton, Oscar Wilde; foi o caso de Charles Péguy, de Paul Claudel (um admirador de Chesterton), de T. S. Eliot ("In my begining is my end; in my end is my begining") e de W. H. Auden; foi o caso dos "poetas malditos": Baudelaire, Verlaine e Rimbaud. Outros, pelo contrário, acabaram loucos como Nietzsche (os relatórios dos médicos que o tratavam são aterradores) ou entregues ao seu solipsismo e tenebrosa eugenia, como Shaw.


- A Confissão:


Stavrógin é não só uma espécie de Rousseau, como Rousseau é, ele mesmo, um Stavrógin, na sua descrença na bondade humana, na sua misantropia. Ambos tentam contrapor à confissão cristã, como meio de obter a redenção, uma confissão secular, cheia de impasses e de hesitações. O resultado é a ausência de gratidão e do conforto da verdade. A revolta em vez da vergonha, esse sentimento tão intrinsecamente humano que faz a alma mirar-se no espelho de Deus, a observar as suas manchas na túnica branca. A revolta como a resposta daquele que se recusa mirar-se a esse espelho. Esse foi afinal o grande motivo porque Chesterton se tornou católico: “Porque me queria livrar dos meus pecados!”


- Ciência e Sapientia:


Quer Dostoiévski quer Chesterton concretizam a grande missão da mente humana: o encontro entre as ciências e as humanidades, entre o saber empírico e o conhecimento que forneceu a definição do método científico, ele próprio fora do âmbito científico, mas assente numa fé. A fé de que o universo obedece a uma ordem racional; de que ele é externo à mente humana e de que a mente humana pode conhecê-lo, porque a razão humana guarda analogia com o ordenamento racional do universo. Como diria Chesterton, o homem são vê com dois olhos: o olho da ciência e o olho da fé.


Quando Chesterton refere que “não é natural ver o homem como um produto natural”, ele joga com o sentido equívoco da palavra natureza: toma natureza no sentido de encaixado ontologicamente, em oposição à qualidade de ser além da matéria, do espaço e do tempo, mas presente neles, como é próprio à mente humana e ao espírito do homem. A natureza do homem em oposição à natureza física, que consiste na matéria aprisionada no tempo e submetida às leis que o governam, onde se encontra presente. Estas duas ideias de natureza, constituem na verdade o core da arte, filosofia e literatura da civilização ocidental, o paradigma das duas ideias de natureza em King Lear.

Quando fundimos estas duas dimensões da natureza do homem apenas numa, a natural, no sentido estritamente material, caímos numa contradição: Uma vez que apenas dependemos de leis mecânicas, o livre-arbítrio, o pensamento racional e a finalidade tornam-se absurdos. Da impossibilidade de livre arbítrio resultou o determinismo; da ausência de finalidade resultaram a religião dos estetas, como Oscar Wilde e do egoísmo, como Nietzsche; do absurdo do pensamento racional, resultou o desconstrucionismo. 

O absurdo a que chegámos levou os filósofos franceses e os naturalistas a afirmar que a falta de significado na linguagem faz com que não possamos falar de nada com significado. Mas a contradição é óbvia: como pode o autor de tão blasfema afirmação pretender que ela tenha significado, se afirma que todo o discurso não exprime um significado?




C. S. Lewis, em A Base do Pensamento do Século XX, indicou-nos o caminho proposto por Dostoiévski e por Chesterton: “Nem a vontade nem a razão são produtos da natureza.” Um camelo e um cacto não são dotados nem de razão nem de livre-arbítrio, mas apenas, no caso do camelo, de condicionamento, como Pavlov já havia demonstrado. O homem encontra-se na natureza e fora dela, em simultâneo. Como afirmou o reputado historiador da ciência, Stanley L. Jaki, em 1970, “Bacon não foi o fundador de ciência nenhuma; a ciência funda-se num saber muito anterior a ele, quer grego quer escolástico, de que se o universo é racional ele pode ser descoberto pela mente humana.”

Esta ideia de um universo racionalmente inteligível é uma das pedras de toque de toda a civilização ocidental. Lewis afirmaria em Futilidades: “A menos que tudo aquilo a que chamamos conhecimento seja uma ilusão, devemos afirmar categoricamente que, ao pensar, não estamos a traduzir para a razão um universo irracional, mas pelo contrário, estamos a seguir uma racionalidade que preenche o universo.”


A fé de Chesterton assentava num teísmo cristão racional – a religião no sentido de uma regra; uma confiança profunda na existência de um padrão externo da realidade. “O homo sapiens, a glória, a graça e o enigma do mundo, é uma criatura demasiado valiosa para ser apertada e esmagada nessa pequena cela chamada o universo científico”. A sua crítica à crença no progresso inevitavelmente virtuoso viria a ter a sua confirmação nas bombas atómicas, nos Gulag e nas câmaras de gás: “Eu não gosto de triunfos inevitáveis”. 

Ele acreditava em reformas voluntárias e graduais introduzidas por cidadãos comuns inteligentes. Ele acreditava numa liberdade tangível não numa utopia teórica: “Serei de todo incompreendido se se pensar que apelo a um retorno a Atenas ou ao jardim do Éden, porque eu não quero apanhar o comboio mais barato da utopia. Eu quero conhecer a largura e não apenas o comprimento do mundo; eu quero sair do comboio quando ele passar nas antigas planícies da liberdade”.



Estas ideias de partilha de racionalidade entre o homem e o universo, do livre-arbítrio, da finalidade, da democracia, da natureza bivalente do homem, constituem o senso comum que é característica do homem comum. Lewis diria: “A igualdade é um termo quantitativo e como tal o amor é-lhe de natureza estranha.” E ainda: “A verdadeira razão para a democracia é que o homem é um ser tão falível que não se pode confiar em nenhum homem que tenha um poder indiscriminado sobre os seus semelhantes.”


Quando Chesterton afirma que “não é senso comum chamar ao homem um ser oriundo meramente do campo ou do mar”, ele está a fazer o mesmo com a palavra comum que fez com a palavra natureza. Ele escreve: “As coisas que são comuns, como a morte ou o primeiro amor, não são, de modo nenhum, um lugar-comum”. (…) “Nós não vemos um homem correctamente (também significa direito, em grego orthos) se o vermos como um mero animal. Não é normal. É um pecado contra a luz, contra essa imensa luz da proporção que é o princípio funcional de toda a realidade.” Este termo “proporção” encerra toda a doutrina ortodoxa da sapientia et recta ratio, ou a razão correctamente usada para discernir os objectos e as leis de um universo inteligível.

Com a sua metafísica de senso comum, Chesterton lutou toda a vida para manter o conceito tradicional do homem como homo sapiens contra a ameaça de que a ciência possa desantropomorfizar o homem. Ele escreveu em 1922 que “O credo que realmente está a cobrar a dízima e a invadir as escolas…é o grande sistema de pensamento que começou na Evolução e terminou na Eugenia. O Materialismo é, na verdade, a nossa Igreja”.

Kierkegaard apontaria a origem, quer liberal quer revolucionária, deste pensamento materialista: "A mente burguesa caracteriza-se precisamente pela impossibilidade de pairar acima da realidade do espaço e do tempo. Tem sempre a preocupação pelos meios sem a consideração pelos fins; o fascínio pela técnica sem a consideração pela finalidade."



No nosso tempo, apesar dos reveses com os campos de concentração e os Gulags, a eugenia está de volta. Os desastrosos equívocos do materialismo foram sempre objecto da crítica de Chesterton e ele sempre afirmou que a Igreja se lhes oporia com o seu dualismo de senso comum: “A Cristandade, logo no seu início, combateu os maniqueus porque eles não acreditavam em nada além do espírito; agora tem que combater os maniqueus, porque eles não acreditam em nada além da matéria.”

Mas a ideia de um homem comum não é equivalente a uma ideia de um homem vulgar. Lewis diria: “Não existe tal coisa, uma vez que aquilo que nos é comum a todos, não é de modo nenhum uma coisa comum.” Em 1941, em Oxford, diria: “Não existem pessoas vulgares. Nunca falámos com um mero mortal. Nações, culturas, artes, civilizações – são mortais…Mas são imortais aqueles com quem brincamos, com quem casamos, a quem humilhamos, a quem exploramos. À semelhança do Santíssimo Sacramento, o teu próximo é o objecto mais sagrado que te é apresentado aos sentidos.”




Citando Dante, Paraíso V:19-20, Chesterton afirma a convicção de que ao fazer um uso correcto da razão em liberdade, o homem se assemelha ao Deus que o dotou de tal razão. Chesterton considerava uma loucura obscena alterar a percepção do homem como imagem de Deus para o perceber como um mero produto da matéria: “Alguma coisa no espírito vil do nosso tempo nos faz inclinar a encontrar uma explicação material ou mecânica para tudo, para as nossas acções e para as acções de outras pessoas, quando se sabe que estas geralmente resultam da parte não mecânica do homem, essa qualidade sagrada da criação: a livre escolha”.

Chesterton jornalista, Dostoiévski engenheiro, Lewis historiador e professor de filosofia e literatura…filósofos ou não? Diz Étienne Gilson:

“Chesterton é um dos mais brilhantes pensadores que alguma vez existiram, apesar de não ter sido um académico, nem um filósofo profissional, nem sequer aquilo a que hoje se chama um intelectual. Ele era apenas um jornalista, em certo sentido, um jornalista contundente. Ele era um jornalista metafísico, um escritor contundente que viu a vida como um todo, como ela é. Ele tentou obter para cada um uma visão da vida à luz de uma filosofia geral. Numa época de especialistas, ele era generalista; numa época de professores de filosofia, ele era um filósofo; numa época de notícias da actualidade, ele esforçou-se por apresentar as verdades ancestrais de uma forma nova, poder-se-ia dizer na forma de uma novela.”





António Campos

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