sábado, 8 de fevereiro de 2014

Eu, Fyodor Mikhailovich



Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto. Jo 12:24.




A minha família era originária da Lituânia, católicos, de sangue escandinavo, muito pobres. Emigraram para a Ucrânia e trocaram a sua religião pela religião ortodoxa. Era
uma tribo de intelectuais nómadas à procura de alimento e das respostas últimas para os eternos problemas das almas. O meu pai era médico e trabalhava num hospital de indigentes, a nossa casa era-lhe sobranceira. Um muro alto separava a nossa casa do jardim dos doentes. No Inverno, o vento gélido de Moscovo sibilava e congelava os corpos semi-adormecidos e enrolados nos bancos do jardim; no Verão, o vento continental quente trazia-me a falta de asseio, os velhos que se consumiam na doença e na decadência e as crianças estropiadas que sorriam, num sorriso desdentado e simples, como os farrapos que vestiam.

Percebi o terrível paradoxo da vida: uma natureza poética e bela na qual se desenrola o sofrimento humano.

O meu pai surpreendeu-me uma noite a esgueirar-me para o jardim dos doentes. Furioso, fechou o portão e ordenou-me que jamais o voltasse a abrir:
- Constrói um muro à volta de ti mesmo. Conserva-te a salvo do contágio dos colegas.

Mas eu não deixava de sentir compaixão por todo aquele sofrimento. Decidi dar-me uma sova por dia para partilhar o sofrimento dessas pobres almas. Sofrimento no meio da beleza. É necessário sentir dor para que se possa entrar num jardim.

Aos dezasseis anos o meu pai inscreveu-me na Escola de Engenharia de São Petersburgo. Foi um choque. Eu era um totó, mas era tomado por um snob. A mulher era para mim um ser tão estranho e esquivo como uma doninha e tão fascinante e belo como uma marta. Em contrapartida, os meus colegas já sabiam tudo o que há para saber sobre mulheres e sexo. Escarneciam de mim, da minha timidez e embaraço, da minha pele alba e cerácea. A minha companhia eram os meus sonhos, sonhos de algo grande e belo, sonhos de escrever um drama romântico. 
Esqueci os conselhos do meu pai e juntei-me a esses rapazes. Bebíamos vodka, recitávamos Putschkin e pecávamos com as mulheres. O meu pai invariavelmente recusava os meus pedidos de dinheiro. A morte do meu pai deixou-me órfão, mergulhei nas trevas da noite.

A noite encontrava-se povoada de sombras, visões aterrorizadoras e fantasmagóricas. Agora que conhecia a cabeça do povo russo, queria conhecer-lhe o coração sofredor. Parece que um homem solta a língua à frente de um copo de vodka, mas eu olho de soslaio, sou tímido e tenho cara de poucos amigos. Como ouvir um homem, com a cabeça baixa e os ouvidos bem abertos? Numa partida de bilhar! Eu era um péssimo jogador: perdia dinheiro, mas ganhava sabedoria.

E assim surgiu Gente Pobre. Homens feitos pela metade, idiotas com olhos bonitos e membros retorcidos. Eu não via sentido para a sua vida. A obra foi um sucesso, muito pela mediação do poeta Nekrasov e do crítico literário Bielinski, que adorava o realismo e considerou o livro o primeiro do género na Rússia. Voltei pois para os intelectuais e Bielinski abriu-me as portas de par em par.

Os intelectuais eram a chave do progresso do homem; eles mudariam a face da Rússia, derrubariam o Czar e ergueriam uma república de homens livres. Não era nenhum Deus, mas sim o Homem, o resgate da humanidade. Será a razão que nos levará do sofrimento ao êxtase. Entrei para uma comunidade hermética e iniciática, o Círculo Petrashevski, um grupo de fanáticos radicais, inimigos do Czar. Nikolai Spechniev inspirou-me para escrever Os Demónios, onde é Nikolai Stavróguin. A organização permaneceu secreta até após a queda do regime, pois só se tornou conhecida em 1922. Já não ia às reuniões há 3 meses quando fui preso, em 1849.




Poupado ao fuzilamento, fui deportado para a Sibéria. Na primeira paragem do comboio, uma mulher entregou-me uma bíblia e uma nota de 25 rublos. Com ela comprei tabaco, sabão, pão branco e roupa branca. As minhas mãos habituadas à caneta conheciam agora as agruras do trabalho forçado. Na prisão tinha-se revelado a minha epilepsia da qual tinha ataques periódicos. É verdade que o Freud afirmou mais tarde que se tratava de uma histeria, por complexo da morte de meu pai. A sua afirmação leviana expressa apenas a sua própria circunstância e não contém qualquer fundamento científico. Um homem esquece sempre que as palavras que profere nos dizem mais sobre o emissor do que sobre o destinatário. No entanto, ele tirou proveito material da fantasia que escreveu, Dostoievski e o Parricídio

A verdade é que a terrível experiência da prisão colocou-me na rota do transcendente. Passei a compreender que o Homem não conseguia redimir os irredimíveis, não conseguia encontrar um sentido para a vida dos brutos e dos miseráveis. Além disso não encontrava equilíbrio entre o crime e a maldade do homem nem entre o castigo imposto pelos tribunais e a vontade de Deus. Deus salva muitos daqueles a quem os homens punem. Deus salva tanto o justo como o pecador. Desta experiência resultou Memórias da Casa dos Mortos, o volte face.

A mudança profunda que sofri após os dez anos na Sibéria descrevo-a em O Diário de um Escritor na boca do mujique Marei: Sou filho da descrença e da dúvida, até ao presente e mesmo até à sepultura. Que terrível sofrimento me causou, e me causa ainda, a sede de crer, tanto mais forte na minha alma quanto maior é o número de argumentos contrários que em mim existe! Nada há de mais belo, de mais profundo, de mais perfeito do que Cristo. Não só não há nada, mas nem sequer pode haver.

Saído da prisão, em 1854, ainda na Sibéria, fui obrigado a servir como soldado por mais quatro anos. Apaixonei-me pela mulher do comandante, Maria Dmitrievna Issaïeva. Ela era uma loira bonita, de média estatura e delgada, exaltada e ardente. O marido estava à morte. Já contava trinta e cinco anos e era a primeira vez que estava apaixonado. Mas pensava que deveria viver como celibatário e que jamais me deveria casar. O marido morreu em 1857 e nós casámos. Voltei à Rússia. Maria entretanto adoeceu com tuberculose, a doença de seu marido, a sua face estava irreconhecível. Lembrei-me da minha infância e do jardim dos doentes. Os sãos de um lado do muro, os doentes do outro lado…os doentes devem morrer, os sãos sobreviver.

Em Dezembro de 1859 permitiram-me regressar a São Petersburgo. Publico Humilhados e Ofendidos. Entretanto, Memórias da Casa dos Mortos tornou-se um grande sucesso. 


Os anos de 1862-63 trazem-me viagens pelas cidades europeias e…Apolinaria Pankratievna Suslov. Esta jovem estudante marxista escrevera-me uma carta de amor no final de uma conferência. Ela era friamente voluptuosa. Até no amor era uma atormentadora. Seria capaz de cometer um crime com a maior indiferença. Era por vezes gélida, como o gelo do Inverno, no entanto nunca vi mulher tão sensual. Entretanto escrevo Crime e Castigo, onde descrevo o super-homem, Raskolnikov. Apolinária escorraça-me, atormenta-me, obriga-me a seduzi-la e a odiá-la. Ela trai-me e eu imploro-lhe continuamente que não me exclua da sua vida; de joelhos, em lágrimas, peço-lhe que não me exclua do seu quarto.

Recebo entretanto a notícia de que a minha mulher, Maria Dmitrievna, está nas últimas. Resolvo voltar a São Petersburgo. Contrato uma estenógrafa e secretária para acelerar o termo de Crime e Castigo. Ana Gregorievna sentiu-se particularmente impressionada naquela manhã ao ver-me escrever ao lado da minha esposa moribunda. Maria morre em 1864 e logo depois o meu irmão Mikhail. Fico com os seus quatro filhos a cargo, bem como com o meu irmão alcoólico, Nikolai, para já não falar em dívidas na ordem dos 25 mil rublos. Edito Cadernos do Subterrâneo, que exerceria uma influência marcante em Nietzsche, Tolstoi e Sartre. 

Lembro-me desse rapaz alemão, o Nietzsche, pelas comparações que se fizeram comigo. Até disseram que eu iniciei o existencialismo e o niilismo. Quando eu terminei Crime e Castigo esse rapaz tinha 21 anos. Ainda andava na sua fase pessimista. Alguns dizem que ele partilha comigo, como princípio de partida, a ideia de que o homem é livre de determinar o seu destino, embora essa liberdade lhe acarrete angústia e sofrimento. Entretanto, eu não compreendo como se é livre num determinismo de eterno retorno.

Mas a diferença maior não se encontra no ponto de partida, mas sim, no ponto de chegada: é que enquanto eu chego ao homem-Deus, i.e., Cristo, ele deifica o homem e inventa a sua fantasia do super-homem, o monstro que quer ser Deus. Eu não necessito odiar o homem nem matar Deus. Eu mantenho o homem sem ser dissolvido em Deus e Deus sem engolir o homem. A minha obra tem uma tendência para construir e não para destruir, o meu estado de alma impele-me para a afirmação e não para a negação. Eu creio que o homem e o seu destino passam pelo destino da liberdade e o seu preço: a purificação e a libertação. Sem liberdade o homem não existe. O caminho da liberdade é o caminho do sofrimento que deve ser percorrido pelo homem. Eu concebo a relação do homem com Deus, com todas as angústias da acção das trevas. Eu compreendo a natureza do niilismo, mas eu sou anti-niilista.

Esse rapaz leu o meu livro, Cadernos do Subterrâneo, que comprou numa livraria em Nice e que o influenciaria profundamente. Mas ele nunca fala dos momentos negativos da sua experiência, pelo contrário, afunda-se neles. Essa é a sua loucura. Ele dirá que eu exprimo, de um modo que ninguém alguma vez fez, as oscilações do mundo moderno, da consciência humana, entre a exaltação e a depressão. Fá-lo apenas para deixar clara a sua participação. Mas eu fugi da minha loucura, por meio da força satírica, pela porta da religião. Ele deixou-nos a sua ilusão, que ainda vivemos. A ilusão em que cada um se sente plenamente vitorioso num universo em que todos se encontram derrotados e perdidos. Por isso ficou demente. As descrições clínicas que ficaram dos médicos de Nietzsche são atrozes e apavorantes; por isso geralmente se omite que ele teve a pior das derrotas: morreu louco!



Em 1865 sai Crime e Castigo e, em vinte e seis dias, escrevo O Jogador, para Ana Gregorievna. Ela tinha vinte e quatro anos, eu mais vinte:
- Fyodor Mikhailovich, duas montanhas não poderão unir-se, mas dois seres humanos sim.

Casei-me de novo. Para fugir aos credores fomos viver para Dresden, Genebra, Milão, Florença e novamente Dresden. Em 1868 morre a minha primeira filha, Sónia. Fico arrasado. Publico O Idiota:

O príncipe Myshkin é epiléptico como eu, idiota como eu. Este príncipe é um simplório, confiante na natureza humana, apesar da malícia humana. Há uns patifes que lhe batem e o roubam e ele não ergue um dedo para os deter. Recusa ser “esperto” diante dos expedientes humanos, tudo perdoa porque acredita na bondade humana. É isso que exaspera os adversários. Apercebem-se que ele não é um tolo, apenas vive num nível superior ao deles. Também, como eu, ele teve uma paixão por uma decaída.

Uns jovens sentam-se na minha mesa à hora em que tomo chá. Querem derrubar o Czar e estabelecer uma república como a americana ou a francesa. Eu replico:

- Parem! Para regenerar o mundo não precisamos de um acto de violência, mas de uma acção grandiosa, de uma grande revolução interior.

Perguntam-me como é possível insuflar em todos os homens a inspiração que os leve a praticar essa acção grandiosa, essa revolução interior.

- Porque precisam vocês de todos os homens? – respondo eu. Não compreendem o poder que pode ter um homem justo? Apareça um nessas condições e todos o seguirão.

Em 1879, escrevo Os Irmãos Karamasov, uma obra-prima. Nele relato o caminho da dúvida até à fé, na conversa entre Aliosha, o místico, o seu irmão Ivan, cínico e prático, e o pai de ambos, Fiódor:

- Pela última vez, Ivan, e de forma categórica, Deus existe ou não?

- Em absoluto, não!

- Então quem é que troça do mundo?

- Provavelmente, o diabo – gracejou Ivan.

Nele relato o Deus da alegria, nas palavras do terceiro dos irmãos, Dimitri, o apaixonado impulsivo, positivista:

- Que grande é a ciência que explica tudo. No entanto falta-lhe Deus. Não matei o meu pai mas aceito a expiação. Estaremos acorrentados, privados de liberdade, mas da nossa dor ressuscitaremos para a alegria sem a qual o homem não pode viver nem Deus existir, pois é Ele quem a concede: é o seu grande privilégio. Um condenado pode passar menos sem Deus do que um homem livre.

Nele relato o Deus do perdão, na conversa entre o starets Zósima e a camponesa homicida:

- Há três anos que sou viúva. Era impossível viver com o meu marido. Era velho e batia-me muito.

- (…) Não temas. Enquanto houver arrependimento, Deus tudo perdoa. O amor tudo redime e tudo salva. Se eu, que sou um pecador como tu, me emocionei e senti piedade de ti, com mais razão a sentirá o Senhor.

O homem, e não o mundo, é o meu objecto. Esse anjo-demónio, sábio na sua loucura, louco na sua sabedoria. Aos meus idiotas, sábios, criminosos, santos, eu faço as grandes perguntas da vida. Os homens quando estão zangados falam em fraternidade e humanidade…Quando cometeram crimes inventaram a justiça; para manter os códigos da justiça inventaram a guilhotina. Entretanto apareceram uns homens que começaram a meditar em como podiam ser tão unidos entre si que cada um, sem deixar de se amar a si próprio acima de tudo, não se atravessasse no caminho dos outros. Por essa ideia foram feitas várias guerras. Chorei por eles. Ele virá, o Deus-homem, a quem o mundo tratou malevolamente de Idiota. Ele virá, esse Idiota-Salvador, a esta terra onde o Homem parece real e é espectral e onde Deus parece espectral e é real.


Chegámos a 9 de Fevereiro de 1881, tenho 60 anos. Ocorre-me que não se deve zombar da vida nem temer a morte. Uma estranha caquexia tem-se apoderado de mim. A tuberculose é a doença que recebi por herança do comandante da guarnição da Sibéria, por meio de Maria, a minha primeira mulher. Ana, a minha segunda mulher, e os meus filhos colocam círios em volta do meu cadáver. O significado da vida não está na transmissão de coisas materiais de geração em geração, mas sim na transformação do homem, de bruto em anjo, de pecador em santo.


Amai-vos uns aos outros, nada mais. Não seria preciso fazer mais; todo o mundo é capaz de compreender. Trata-se da verdade antiga, repetida milhões e milhões de vezes, e que, entretanto, não criou raízes em lugar nenhum. É necessário continuar a repeti-la.


Sou bastante fraco em filosofia (mas não no meu amor a ela; no meu amor a ela sou forte).





 António Campos


Bibliografia:

1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoievski. Editora Panamericana Lda, Rio de Janeiro, 1926.

2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta vidas que a morte não apaga. Ed. O Público, 1997.

3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951

4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de Autocarro. Ed. Gráfica de Coimbra, 2010.

5 – Thomas H, Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous Novelists. Arden Library,1982.

6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky

7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e Nietzsche.     www.erealizacoes.com.br/renegirard



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