sábado, 18 de janeiro de 2014

A Contribuição de Vittorio Messori




Vittorio Messori (1941- ), de Modena, licenciado em ciência política com uma tese sobre Risorgimento (Garibaldi, Mazzini & Co), é o autor católico mais traduzido em todo o
mundo. Conheci Messori em 1994 ao Atravessar o Limiar da Esperança com João Paulo II. Na altura não lhe liguei nada. Quem era aquele Zé-ninguém que apresentava o grande Papa com as palavras “Um telefonema”? Depois voltei a ignorá-lo quando ele entrevistava o grande cardeal Joseph Ratzinger em 1985, no excelente Diálogos Sobre a Fé que eu apenas leria no ano transacto. Foi então, mais recentemente, que me foi apresentado e recomendado por Jose Ramon Aillón. Agora já sei quem é Messori: “Que coisa te falta se tens uma biblioteca que dá para um pequeno jardim?” Descobri que Messori e eu temos algo em comum: o gosto por Cícero e a felicidade de possuir uma biblioteca que dá para um pequeno jardim.

Se o músico Narciso Yepes encontrou Deus enquanto estava a olhar a água do rio Sena, já o jornalista do La Stampa O encontrou ao ler o Evangelho. E porque foi este ateu ler o Evangelho?

Talvez a resposta evolua em duas fases, como um fenómeno ondulatório:


Por um lado, este estudante ateu, filho de pais ateus, apercebeu-se de que a política só responde às penúltimas perguntas, i.e., a política não responde ao enigma do mal, da dor, da origem do homem ou do seu destino, não responde à pergunta que o homem faz sobre si próprio: “É importante conhecer-me? Porque não me conheço, porque parece que não posso conhecer-me?”. Parece que, ainda ateu, já se encontrava assombrado por Pascal, cuja fotografia conserva na sua secretária: “Toda a angústia do homem provém de uma só coisa; não saber ficar sossegado no seu quarto”.

Por outro lado, Messori era um ávido leitor dos clássicos, em grego, incluindo Homero, os líricos e os trágicos gregos. No entanto, não sabia nada sobre um obscuro carpinteiro judeu que dividiu a história da Antiguidade em duas metades, antes e depois: “Ainda hoje me espanta como se podem fazer doutoramentos em História sem tocar no nome Daquele que a dividiu a meio!”.

Encontro Messori, no intervalo das minhas obrigações profissionais e académicas, entre o tempo que dedico aos meus três filhos menores e os intervalos de almoço que desde há muito me habituei a poupar, a que se somam os longos jejuns de televisão, numa divisão parcimoniosa de um bem escasso: o tempo.


- Senhor Messori, porquê essa necessidade de investigar o acontecimento Jesus Cristo?


- Como racionalista muito distante do assunto cristão, comecei a ficar intrigado com alguns factos que desafiam a razão: como pode um carpinteiro, oriundo de uma aldeia perdida, numa minúscula e remota província do Império Romano, alterar o curso da história sem ter pegado em armas; e como sobreviveu a sua influência até ao nosso tempo, depois de ter sido várias vezes tida como extinta? Também achei estranho que a sua influência originasse tanto ódio dentro do próprio mundo que vive sob o seu paradigma, sobretudo porque Ele enfatizava o amor caritativo; isso não acontece com outros líderes espirituais. E porque razão haveria o direito romano de ter condenado à morte um inocente, acusado pelos seus apenas por uma divergência religiosa? E, sobretudo, queria uma resposta à pergunta: Ele ressuscitou mesmo?


- O que sentiu um excelente estudante, ateu,  orientado na universidade por professores anti-clericais, com uma mãe que dizia que a Igreja é apenas um pub, quando abriu o Evangelho pela primeira vez?

- Foi uma coisa que ainda hoje me mantém atordoado. Apercebi-me logo que ali estava, não uma ideia, uma história ou um livro, mas sim uma pessoa. A esse mistério dediquei a minha vida!

- Como bom jornalista iniciou o estudo crítico do texto evangélico. Mas, porque o fez, qual a necessidade?

- Procurei trabalhar para mim, procurando não me enganar a mim próprio. Deus, se existe, não precisa das nossas mentiras. Nós temos o direito de ser informados e Jesus tem direito à verdade, não necessita ser preservado por detrás de uma hábil argumentação falaciosa. Será que o Evangelho é uma poesia oriental, folclore semita inventado pelo homem ou é a verdade?

- Lembro-me de ter lido que o senhor refere, creio que em A Hipótese sobre Jesus, de 1977, que ninguém sabe o que existiu antes do seu nascimento ou o que existirá após a morte.

- Sim, parece que acordámos num comboio em movimento que vai atravessar proximamente um túnel, mas não sabemos o que existe do outro lado. Não existe nada, dirão alguns. É uma opinião respeitável, mas destituída de evidência. Por outro lado, Cristo é o único homem que atravessou esse túnel da morte e voltou para nos falar dele, com rigor histórico.

- Rigor histórico?

- Sim. Repare..., ninguém, em nenhuma escola contemporânea, pensa em negar a autenticidade dos textos dos clássicos gregos e romanos, ou a existência dos autores, embora as cópias sejam escassas e estejam separadas dos originais por mais de mil anos (no caso concreto de Platão é de mil e trezentos anos). No entanto, muitos “intelectuais” negam a veracidade de um livro como o Novo Testamento, do qual existem mais de mil manuscritos, alguns dos quais dos séculos II e III. E não é só a questão do rigor histórico…


- Não? Existe outro tipo de evidência?





- Sim, claro. O relato dos evangelhos não assenta só em testemunhos qualificados; ele também nos informa de como os discípulos de Cristo mudaram drasticamente de comportamento após a sua morte e ressurreição, tornando-se seguros, corajosos e dispostos a morrer a troco de nada. Além de que os acontecimentos relatados tiveram uma enorme repercussão na História, na Arte e na Geografia.

- Bem, uma das críticas ao rigor do Evangelho assenta na existência de versões discordantes sobre a mesma passagem: O sermão da montanha de Lucas numa planície, as discordâncias na genealogia de Cristo ou no cartaz que Pôncio Pilatos colocou na cruz. Elas não colocam em causa a sua autenticidade?

- Não! O que se passa é que os “intelectuais” do nosso tempo pensam que descobriram algo! Eles presumem que todos os intelectuais que, ao longo dos séculos, os precederam nunca repararam em tal coisa…Essas versões divergentes sempre lá estiveram!

- Então porque não foram corrigidas as discordâncias?

- É evidente que para a Igreja Primitiva não seria de todo difícil elaborar uma convergência total. Deixar as diferentes versões do mesmo acontecimento seria absurdo, a menos que houvesse uma proibição absoluta de manipular o conteúdo dos documentos.

- Então a não uniformidade sugere autenticidade, devido a uma mensagem impossível de manipular?

- Exactamente. A primeira comunidade cristã recebeu esses quatro textos como intocáveis.

- A genealogia de Jesus apresenta o mesmo tipo de discordância…


- Não o mesmo tipo de discordância, meu caro. O problema é ainda mais profundo. Mateus inclui quatro mulheres na genealogia de Jesus.

- Era o que eu dizia.

- Não, António. É muito pior. A primeira comunidade que, quer Jesus quer os discípulos, sempre tentaram converter foi a comunidade judaica. Mesmo Paulo sempre se dirigia em primeiro lugar à comunidade judaica. Ora, a mulher era vista como uma criatura impura nessa comunidade semita. Essas quatro mulheres em particular eram exemplos de incesto, prostituição, adultério e assassínio.





- Percebo…Isso atingia o mais sagrado da cultura e religião do povo que se pretendia converter.

- Exactamente! Textos inventados nunca cometeriam esse tipo de suicídio. É evidente que o tipo de sedução social, tão presente no nosso tempo, não se encontra presente no Evangelho. Se uma coisa é certa é que aqueles textos não foram feitos para agradar.

- É engraçado que essa marca de choque social, de uma certa rebeldia, parece ter permanecido com os grandes santos, já dentro da cristandade. Lembro-me de S. Francisco, de Santo António, de São Francisco Xavier. Para já não falar nos resistentes aos totalitarismos que pagaram com a vida. Sempre vi os grandes santos como grandes obstinados frente a uma tarefa impossível.

- É isso mesmo o que significa a Fé e a consagração total: o abandono à Divina Providência. Veja o exemplo da descrição do herói, essencial a qualquer mitologia. Nos evangelhos não se diz nada sobre o aspecto físico de Jesus.

- Nada que possa alimentar a devoção ou a curiosidade?

- Isso. Não existe epopeia religiosa ou mitologia que não se tenha preocupado constantemente com a descrição física do seu herói. Isso é essencial ao imaginário mitológico.

- Portanto, o senhor Messori acredita que tudo isto prova que os apóstolos não se desviaram da veracidade dos factos, mesmo apercebendo-se que isso iria dificultar muito a missão a que se propunham?

- António, qualquer judeu que dissesse “bebei o meu sangue” seria lapidado, pois um dos mais intransigentes tabus do judaísmo é a abstenção do sangue!

- Logo, conclui que a primitiva comunidade cristã, de origem judaica, foi obrigada a aceitar e a propagar uma mensagem perturbadora e blasfema. E que se tivesse podido optar jamais escolheria esse caminho, certo?

- Precisamente!

- Em A Hipótese sobre Jesus faz a afirmação de que Jesus Cristo é o único homem na História a quem se associa o nome de Deus. E que na Biblioteca Nacional de Paris, que é um dos espelhos da cultura ocidental, o seu nome é o segundo em registos, apenas suplantado pelo nome Deus.

- Sim. Mas nós ocidentais já estamos habituados a este escândalo incrível. Jamais uma civilização pré-cristã afirmou que um homem é Deus e existe uma inteira religião pós-cristã que o recusa terminantemente, o Islão.

- Nesse livro também se confessa fascinado pelas profecias messiânicas. Uma vez que aconteceram no seio do povo judaico, qual  a sua real importância para o cristianismo?

- António, no Velho Testamento, as profecias sobre a vinda de Jesus são mais de trezentas. Pascal disse que se um homem tivesse inventado aquilo tudo, o seu cumprimento necessariamente teria requerido uma força divina.

- Portanto, parece-lhe pouco crível que tudo aquilo fosse inventado pelo homem...

- Sim, claro, Uma sucessão de homens, por mais de dois mil anos, profetizou o mesmo acontecimento. É todo um povo que o anuncia. Um povo culto e literato.

- Outra passagem do livro refere que outros líderes espirituais, como Buda, Lao Tsé, Confúcio ou Maomé não tiveram essa tradição religiosa a precedê-los.

- Sim, surgiram por geração espontânea. O que acontece com Cristo é que ele vem precedido de uma expectativa de dois mil anos e a sua Igreja continua a obra Dele por mais outros dois mil.

- Raramente nos apercebemos desse processo temporal, esse antes e depois. Qual o seu alcance preciso?

- Meu caro, um fenómeno histórico ininterrupto por quarenta séculos é contrário às leis da História. No plano meramente histórico, é inegável que aquilo que os profetas de Israel profetizaram, milénios antes, se cumpriu totalmente: Israel cedeu o seu predomínio religioso a um povo que saiu dele e que afirma que Deus desceu ao terreno da História para se apresentar como pastor.

- Mas o cumprimento tão exacto das profecias pode dar azo à objecção de que os autores do Evangelho tivessem desenhado um Messias conforme o retrato profético. Concorda?

- Pois, mas a expectativa geral em Israel ia em sentido contrário àquele que Jesus seguiu. Em Israel não se esperava um chefe montado num jumento e muito menos a lavar os pés aos outros ou condenado e crucificado. Isso era e é incompreensível para o povo judeu que se regula pela lógica da política.

- E a Cristandade tem sobrevivido à queda de sistemas ideológicos, de revoluções e de impérios. Até Hegel afirma que Jesus violentou a História para se tornar no seu eixo. A divinização do homem resultou?

- Bom, Nietzsche também admitiu que Ele mudou a História de forma irreversível. Repare, divinizar um homem, admitido pelos romanos no caso do Imperador, era absolutamente interdito no caso judaico. Associar o nome de Deus a um homem era o sacrilégio máximo, a abominação suprema. O nome de Deus era, e é, formado por quatro letras mudas que não podem pronunciar-se.

- Sim, os judeus submetiam-se publicamente a Roma mas recusavam adorar o Imperador. Portanto a tarefa entregue aos discípulos era…, como dizer…, impossível?

- Pelo menos assim parecia. Supor que um carpinteiro da província pudesse equiparar-se a Deus e ser adorado como tal, poucos anos após a sua morte, é não conhecer nada do mundo hebraico. Admitir que a divindade de Jesus Cristo é fruto da crendice dos seus contemporâneos é ignorar que os judeus preferiram a aniquilação e a destruição total do país a ter que reconhecer a imagem de um homem, o Imperador Romano, divinizada em Jerusalém.

- Persistir nessa ideia de um homem-Deus comportaria os seus riscos?


- Bom, Santo Estêvão, o primeiro a proclamar continuada e publicamente que Jesus Cristo era Deus, foi arrastado para fora da cidade e morto à pedrada. Ainda hoje, o mesmo sangue semita sob forma de um pós-cristianismo, o Islão, se revolta contra essa pretensão cristã de um homem se equiparar a Deus.




- O vaticanista Andrea Tornielli que prefacia o seu livro A Hipótese sobre Jesus afirma que o senhor escreveu o livro que não encontrou. No entanto, muitos encontraram o seu livro, uma vez que o livro foi um sucesso. Mais de um milhão de exemplares vendidos, traduzido em trinta línguas e, apesar de escrito nos anos setenta, ainda vende anualmente 20 a 30 mil exemplares. A que se deve esse sucesso?

- Bem, eu não tenho mérito algum. O mérito deve-se todo a Cristo – é Ele quem continua a interpelar a humanidade. Veja bem, o livro foi visto com hostilidade pelos anti-clericais e com cepticismo por muitos crentes. Todos me tentaram dissuadir. Mesmo os Salesianos que o editaram, tiveram-no um ano na gaveta e, finalmente, apenas imprimiram 3 mil exemplares.

- Nos tempos actuais vive-se na aura do secularismo. Em nome de “todas as religiões” parece ensaiar-se a proibição da prática pública de uma só. Existe o caso da retirada de crucifixos de edifícios públicos em muitos países. Isso afecta-o muito como católico?

- Não me escandalizo nem rasgo as vestes pelo que aconteceu em Espanha e em muitos outros países, porque estou convencido de que um pouco de dificuldade e de hostilidade fazem bem ao cristianismo; desperta e faz tomar consciência da própria identidade.

- O senhor Messori entrevistou dois Papas. Em 1985, o cardeal Ratzinger, que viria a ser o Papa Bento XVI e em 1994 o Papa João Paulo II. Qual deles lhe causou a maior impressão?

- É difícil comparar pessoas diferentes, mas não é verdade que a Igreja a todos concede o mesmo nome, Pedro?

- No entanto, não deixam de ser homens diferentes; o que leva a que umas pessoas se identifiquem mais com uns do que com outros…

- Sim, mas São Paulo já respondeu por antecipação à sua pergunta: “Não digais eu sou de Paulo ou eu sou de Apolo, pois ambos servimos a Cristo”. E reforçou: “Se todo o corpo fosse olho, o que seria do ouvido?” Penso que isto responde por antecipação a essa pergunta.

- Sim. Já não lhe vou perguntar o que pensa do Papa Francisco. Obrigado!

Despedimo-nos. Messori não é um escritor vigoroso e místico como Dostoievski; não é um escritor prolífico e polemista como Chesterton; não é um académico claro e cristalino como C. S. Lewis. Mas nenhum dos três entrevistou dois Papas. A Messori, entre outros, devemos a compreensão do valor da Crítica Textual de manuscritos.1 Ele afirma repetidamente que o que mais lamenta é que muitas vezes a sua conversão intelectual, que é total, não se acompanhe de uma conversão do coração: “Quanta distância existe em mim, cristão, entre o pensamento e a vida!”.

Quando penso em Messori, lembro-me sempre do que Santa Teresinha de Lisieux me disse quando li A História de uma Alma: no jardim de Deus há almas que são majestosas como as magnólias, outras deslumbrantes como as camélias ou as rosas, outras simples como as margaridas. Mas como é belo um campo com milhões de margaridas!




António Campos (esta foi, naturalmente, uma entrevista imaginária)




1 Critica Textus, na designação latina, avalia a fiabilidade dos manuscritos e estabelece os critérios objectivos que nos devem levar a preferir uma variante a outra. A Crítica Textual cria as chamadas “edições críticas”, isto é, a apresentação do texto reconstruído, mas com a indicação de todas as variantes existentes e a justificação para se ter escolhido uma em lugar de outra. O grau de certeza em relação às escolhas é diversificado e as próprias dúvidas vêm também assinaladas.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Clive Staples Lewis




Um dos dez tipos de José Ramón Ayllón apareceu-me um destes dias em sonhos, o Prof. Doutor Clive Staples Lewis (1898-1963). Lewis, professor de filosofia e literatura em Oxford desde 1925, era ateu, porque via a história humana como uma
sucessão de crimes, guerras, doenças e sofrimento.

Disse-me Lewis:

- António, tu afirmas continuamente que tudo isto que observamos no universo é obra de um espírito omnipotente e misericordioso, mas eu vejo-me obrigado a responder-te que todos os testemunhos apontam na direcção contrária.

- Professor, eu identifiquei num dos seus livros o seguinte problema: "Como é possível que um universo tão mau seja atribuído pelos humanos à acção de um sábio e poderoso criador?" Pode ser que os homens sejam idiotas, mas é difícil que da sua estupidez possam inferir o branco a partir do negro.

- Para um cobarde como eu, o universo do materialista apresenta uma responsabilidade limitada. Nenhum desastre infinito nos pode apanhar porque a morte põe um ponto final a tudo.

- Mas professor, Sócrates dizia (e eu sei que aprecia os clássicos): “Se a morte acabasse com tudo, isso seria uma vantagem para os maus”.

- António, os escritores deixam-me perplexo. Todos aqueles que não têm a doença da religião, como Shaw, Wells, Mill, Voltaire, para os quais a minha afinidade deveria ser total, são pouco profundos e demasiado simples. Neles, o dramatismo e a densidade da vida encontram-se ausentes. Por outro lado, os mais religiosos, como Platão, Ésquilo, Virgílio, são aqueles que me alimentam verdadeiramente.

- Mas eu sei que a afirmação de Lucrécio exerceu grande influência sobre o professor. Refiro-me à afirmação “Se Deus tivesse criado o mundo, não seria um mundo tão frágil e imperfeito como o que vemos”.

- Sim, eu escrevi um livro em 1940 sobre isso. Chama-se O Problema da Dor. Se Deus é tão bom e omnipotente não podia impedir o mal e fazer triunfar o bem e a felicidade entre os homens?

- Parece-me uma questão razoável…

- Meu caro António, um mundo em que um bastão de basebol, quando empregue como uma arma, se transforme automaticamente numa folha de papel ou em que o ar impeça a propagação das ondas sonoras que compõem as palavras que formam as mentiras ou insultos, nega o livre arbítrio à criatura humana, anula a liberdade humana. Mais: a matéria cerebral do homem que concebesse maus pensamentos, uma vez que é o pensamento que dirige a acção, teria forçosamente que se alterar. Ou seja, a matéria próxima de um homem mau, na verdade de todos os homens, estaria submetida a constantes modificações imprevisíveis. Isto significa que eliminar o sofrimento que decorre da existência de vontades livres, implica eliminar a própria vida.

- Parece-me detectar uma alteração subtil nas suas convicções. Chesterton teve alguma coisa a ver com isso?

- Sim. Em 1918, adoeci na frente de batalha durante a Grande Guerra. Fui enviado para o hospital de Le Tréport. Foi lá que li pela primeira vez um ensaio de Chesterton. Mal sabia onde me estava a meter.

- Alguma vez encontrou Chesterton, uma vez que ele só faleceu em 1936?



- Não. Mas o argumento de Chesterton, retirado de O Homem Eterno, de que Cristo é um demónio, um mentiroso ou um louco, a menos que seja Quem diz ser, levou-me a escrever Cristianismo Puro e Simples. Compreendi que Cristo jamais poderia ser meramente um grande professor ou um grande profeta, como muitos alegam que ele foi. Um grande professor ou um grande profeta jamais faz a afirmação idiota de que é Deus. Aliás há um Papa que veio depois de mim que referirá num livro chamado Introdução ao Cristianismo, que Buda apontou um caminho, para o Nada, enquanto que Cristo disse que Ele é o caminho, para Tudo; um propõe a via da anulação, o outro propõe um encontro.

- Começou o caminho com Chesterton…

- Sim, Chesterton tinha mais senso comum que qualquer escritor contemporâneo. Todos parecem à procura de qualquer coisa e sentimos que nunca vão encontrar. Em 1926, após ter lido O Homem Eterno, um amigo meu ateu, académico, veio a minha casa dizer que as provas da historicidade dos evangelhos são surpreendentemente boas. A raposa foi expulsa do bosque hegeliano e corria pela charneca, a céu aberto, com todos os sofrimentos deste mundo, suja e cansada, com todos os cães atrás de si. A matilha não se calava: Chesterton, Platão, Dante, McDonald, Herbert, Tolkien, Dyson, eram os piores.

- E…

- António, tens de me imaginar sozinho, naquele compartimento do Magdalen College, noite após noite, a sentir a aproximação inexorável Daquele com quem não me queria encontrar.

-Estou a ver, professor. Quem diria? E quanto tempo durou isso?

- Na festa da Santíssima Trindade de 1929, cedi. Admiti que Deus era Deus e, de joelhos, rezei. Até aí supus que o centro da realidade seria um lugar, a partir daí percebi que era uma Pessoa.



- Entende então a fé como um encontro entre duas pessoas, a criatura e o Criador? Como pode estar certo, se não tem uma prova?

- Meu caro, exijo de um amigo que confie em mim, mesmo que para isso não tenha uma prova irrefutável. Se ele pede essa prova, é evidente que não confia em mim. Deus pede-nos essa generosidade; a magnanimidade de acreditarmos numa possibilidade razoável.

- Mas, e se cremos e, no final não é verdade?

- O erro seria então mais interessante do que a realidade. Como poderia um universo mecânico e idiota ter produzido criaturas cujos sonhos são muito melhores, mais vigorosos e subtis do que ele próprio?

- Ainda subsistem duas questões: porque Deus não nos dá uma assinatura inequívoca e qual o significado da dor?

- Sobre a assinatura, creio que muitos já escreveram sobre isso. Até você já o fez e creio que o voltará a fazer a propósito destes dez ateus que se converteram. Quanto ao problema da dor…sabe,… a dor, a injustiça e o erro são três tipos de males com uma diferença: a injustiça e o erro podem ser ignorados pelo que vive com eles; a dor não. É um mal desmascarado, inequívoco. Deus fala-nos por meio da consciência e grita-nos por meio das nossas dores. As dores são os megafones para acordar um mundo surdo.

- É uma perspectiva interessante e decerto original…

- Não tenho a certeza nem a preocupação de que seja original, mas sim a de que seja verdade. António, um homem injusto a quem a vida sorri não sente a necessidade de mudar de comportamento; pelo contrário, o sofrimento desfaz a ilusão de que tudo anda bem. A dor pode conduzir a uma obstinada revolta, mas também pode ser a oportunidade única para o malvado se corrigir. A dor rasga o véu da aparência e iça a bandeira da verdade no cimo do castelo da alma rebelde.

- Lembro-me ler algures a sua afirmação de que existe uma diferença entre os factos que ocorrem e as leis da natureza. Não compreendi muito bem…

- Sabe, podemos acrescentar cinco dólares a outros cinco e teremos dez dólares. Mas não existe nenhum meio que faça com que a aritmética coloque um novo dólar dentro do nosso bolso. As leis explicam todas as coisas, menos a origem das coisas, o que é, cá para nós, uma imensa excepção. Tenho uma pergunta para si: quando, no Hamlet, se parte o ramo e a Ofélia cai ao rio e se afoga, isso acontece porque se parte o ramo ou porque Shakespeare quer que Ofélia morra nessa cena?

- Parece-me que foi Shakespeare quem se lembrou do ramo…

- Podemos escolher a alternativa que mais nos agradar. No entanto, a alternativa não é real uma vez que Shakespeare é o autor da obra inteira.


Subitamente acordo. São 4.30h. Nesta noite, como em tantas outras, devido à apneia, o primeiro sono dura 3 horas. Como sempre, procuro tomar a barca do segundo sono, mais 2 horas e meia. Hoje, estou mais confortado. Já me tinha acontecido sonhar com escritores, com anjos e com o próprio demónio, mas nunca me tinha acontecido sonhar com um escritor que é simultaneamente um anjo e que escreveu, ele mesmo, ao próprio demónio, sob forma de aprendiz, ou médico…da alma humana.


António Campos

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Carta a Chesterton



Caro Senhor Chesterton,


Tive oportunidade de o conhecer muito recentemente. Admiro a forma e o conteúdo do que escreve, a sua atitude perante a vida e perante os outros, numa palavra, o seu
exemplo.
Pensei oferecer-lhe uma prenda, uma vez que se aproxima o dia de Reis. Como não me parece fácil entregar-lha pessoalmente, pelo menos para já, pensei em oferecer-lhe algo que o dinheiro não pode comprar. Primeiro ocorreu-me cantar uma sonata ou uma canção popular. Acontece que sou um péssimo cantor. Aliás, já pedi ao meu Senhor, que numa próxima oportunidade, faça de mim uma harpa que plane ou um címbalo que tine. Ocorreu-me também dançar um tango ou uma sevilhana. Acontece que nem uma valsa consigo dançar; sou membro do grupo dos pés de chumbo. Depois pensei em escrever. Mas que poderia eu oferecer escrito a um dos príncipes da escrita sem que ele não evite sorrir até chegar às lágrimas?

Então, em desespero de causa, e tentando cumprir o meu intuito, mergulhei nos seus escritos. É verdade que a sua Ortodoxia já há muito fez derrubar a minha, aquela que eu tão pacientemente tinha construído, num fervor revolucionário estudantil, erigida entre debates e noitadas, enfeitadas de filmes de Fassbinder, de Herzog, teatro de King Lear com Kenneth Branagh, de revistas que iniciei na faculdade, escritas sobre os meus heróis musicais - o esteticismo lírico e deprimente de Ian Curtis ou de Jim Morrison, a loucura planante de Robert Smith. O percurso entrecortava com serenatas e copos, namoros breves e muito estudo, porque tinha que fazer pela vida. Para dizer a verdade, antes de o conhecer, já João Paulo II tinha feito tremer o meu compacto edifício racionalista e, quando vi o Papa em 1982, os vidros estilhaçaram e pouco restou dos seus alicerces.


Tenho lido alguma coisa do que escreve. Reparei que entre dedicatórias, ensaios, livros, peças dramáticas e cómicas, sátiras e poemas, também se encontram críticas literárias. Recentemente li o seu livro Twelve Types na sua língua materna, com a qual guardo alguma afinidade. Afinidade porém feita de amor e uso, de esforço e trabalho, não da espontaneidade e naturalidade que o meu caro amigo possui, uma vez que, pelo que lhe terão dito, terá nascido nessa terra de heróis e vilões, de crianças de pés nus e narizes sujos da fuligem da miséria, de piratas que são Sirs, de forcas para reis e fidalgos, de imperialistas e mercadores, de honra e vaidades, de folhas caídas e de ventos irados, de chuvas pletóricas e nevoeiros perenes, de Jane Austen e William Shakespeare, de diplomatas e carácter, de orgulho e tradição.


Pensei fazer uma crítica e sinopse dos seus Doze Tipos. Talvez o faça, talvez o deva fazer, mesmo que mal. Tenho este defeito muito feminino, usando as suas palavras, de que para uma mulher se existe alguma coisa que se deva fazer, então ela deve ser feita, mesmo que mal. Mandou a prudência que para oferecer algo a alguém tão culto e sabedor, algo que lhe pudesse prender a atenção, ainda que por alguns breves instantes, pedisse a ajuda a alguém mais culto e sabedor do que eu e, para o caso em questão, muito melhor escritor. Foi assim que conheci José Ramón Ayllón, perdido numa livraria do meu país, numa daquelas livrarias de que nunca ninguém ouviu falar. Após a primeira abordagem, contou-me que também ele tinha sentido o apelo de escrever sobre tipos, na verdade dez tipos que mudaram do ateísmo para o cristianismo, e que o senhor era um desses tipos. Talvez não lhe esteja a contar nenhuma novidade… Mas não é verdade que algumas das prendas que recebemos nada têm de novidade?


Lembro-me de uma prenda, tão imaterial como esta, que o senhor escreveu no Outono de 1896 a uma mulher, Frances Blogg. Nessa noite, no silêncio da sua casa, escreveu: “Qualquer actriz conseguiria parecer-se com Helena de Tróia, mediante uma pintura nos lábios e uma pequena maquilhagem, mas nenhuma poderia parecer-se contigo sem ser uma bênção de Deus”. Que grande prenda, sobretudo dada por um agnóstico! Claro que é muito possível que Frances tenha comentado com sua irmã, a propósito dos olhares que lhe lançava, em casa dos pais: “Meu Deus, nunca pensei que pudesse sentir tanto com tão pouco!”

Lembro-me, assim de repente, de umas quatro prendas que recebeu, da mesma natureza imaterial: Um telegrama do cardeal Eugenio Paccelli, futuro Papa Pio XII, num momento particularmente dramático da sua vida, uma carta de Albino Luciani, futuro João Paulo I, e mais duas citações de dois Papas, Bento XVI e Francisco. Tenho a certeza de que foram prendas que seguramente apreciou; creio mesmo que as terá colocado debaixo da árvore de Natal, juntinho ao Presépio. Ainda há quem vislumbre encantos para além da matéria.





Recordo, em 1910, Bob Dell, que criticara o seu livro, A Esfera e a Cruz, nestes termos: “O homem que se faz católico, deixa a sua responsabilidade no átrio e crê nos dogmas para se livrar da angústia de pensar”.

A sua resposta foi limpinha, sem espinhas:
“Euclides, ao propor definições absolutas e axiomas inalteráveis, não isenta os geómetras do esforço de pensar. Pelo contrário, propõe-lhes a árdua tarefa de pensar com lógica. O dogma da Igreja limita o pensamento da mesma maneira que o axioma do sistema solar limita a Física: em vez de parar o pensamento, oferece-lhe uma base fértil e um estímulo constante.”

E pouco mais tarde, no Daily News
“Eu creio, porque assim o afirmam fontes autorizadas, que o mundo é redondo. Que possa haver tribos que creiam que ele é triangular ou oblongo não altera o facto de que, sem sombra de dúvida, o mundo tem que ter uma determinada forma e não outra. Portanto, não digais que a variedade de religiões vos impede de crer numa. Não seria uma atitude inteligente”.

Em 1922, após a sua conversão, escreveu no Daily News: “Segundo você, confessar os pecados é uma coisa doentia. Eu responder-lhe-ia que doentio é não os confessar. O doentio é ocultar os pecados, deixando que lhe corroam o coração. Tal é o estado em que vive a maioria das pessoas das sociedades ditas civilizadas”.

Tenho a certeza de que gostou que a ideia repetidamente afirmada ao longo do seu livro, O Homem Eterno, a ideia de que o cristianismo não é uma teoria mas sim um acontecimento, a história de que o misterioso Criador do mundo visitou o seu mundo em pessoa, tenha sido enfatizada pelos três últimos Papas: o cristianismo é um encontro com uma pessoa concreta! 

“Estou orgulhoso de me ver atado por dogmas antigos e escravizado por credos profundos (como dizem os meus amigos jornalistas com frequência), pois sei muito bem que são os credos heréticos aqueles que morreram e que só o dogma razoável vive o tempo suficiente para ser chamado antigo.”

Em busca da sua orientação e auxílio, lembro-me sempre das suas palavras em verso: “Nunca ninguém se riu da vida como eu me rirei da morte”.

Poder-nos-à deixar uma mensagem, uma mensagem que rompa o muro da morte e do cepticismo, um bilhete que traga entendimento ao coração sem passar pelo intelecto?

Desde aquele dia de Outubro, chuvoso e frio, em que nos encontrámos, senti que nos deixaria este bilhete, que nos anima e nos guia, que nos consola e nos alenta, senti que nunca deixaria de estar connosco, meu amigo. Dizem que este bilhete que nos deixou é de Santo Agostinho, mas a mim parece-me que a sua formosura é um apelo que nos acorda e que nos resgata desta espelunca onde vivemos. Chamemos-lhe carta de uma criança a sua mãe e aqui fica para todos os que percorrem o vale das sombras, para que digam: “Assim como a corça suspira pelas correntes de água, assim também a minha alma suspira por Vós, oh meu Deus”:


"Não chores se me amas. Se conhecesses o dom de Deus e o que te espera no Céu!
Se pudesses ouvir o canto dos anjos e contemplar-me no meio deles!
Se, por um instante, pudesses contemplar como eu, a Beleza diante da qual se desvanecem todas as belezas!
Amaste-me no país das sombras, e não te resignas a ver-me no das realidades eternas?
Crê em mim: quando chegar o dia que Deus fixou para vires para este Céu, para onde te precedi, voltarás a ver aquele que sempre te ama e encontrarás o meu coração com todas as ternuras purificadas.
Encontrar-me-às transfigurado, não como quem espera a morte, mas avançando contigo pelos caminhos da luz.
Por isso, enxuga as tuas lágrimas e não chores, se me amas".

Escrevi uma vez num jornal, a propósito da morte de um conhecido historiador e professor universitário, que não lamentava a sua morte, antes dava graças a Deus pela sua vida, pelo muito que nos deu a conhecer. Meu caro amigo, essas palavras, que lhe envio, não poderiam ser mais apropriadas.







António Campos