domingo, 3 de novembro de 2013

KANT PARA PRINCIPIANTES - Epílogo: Os Críticos – Chesterton




“A realidade foi concebida por forma a que o improvável possa ser, em princípio, concebível. O primeiro golo da ciência trouxe-nos o ateísmo, mas no final do copo espera-nos Deus.” Werner Heisenberg (1901-1976), fundador da mecânica quântica, prémio nobel da física em 1932.




Chesterton enfatiza quatro aspectos insanos em Kant, e na filosofia alemã em geral:

1 - A centralidade no eu:


“O grande contemplativo é exactamente o contrário do falso contemplativo, desse místico que apenas olha para a sua própria alma, o artista egoísta que se aparta do mundo, evitando-o, e que vive apenas dentro da sua própria mente.
A questão metafísica principal consiste em perguntar se podemos provar o acto primeiro do reconhecimento de uma realidade como real. (…) O solipsismo significa simplesmente que um homem acredita na sua própria existência, mas não na de mais ninguém nem de mais nada. E contudo, nunca passou pela cabeça deste sofista simples que, a ser verdade a sua filosofia, não haveria outros filósofos que a pudessem professar.”58

“Existe um céptico que está convencido que todas as coisas começaram nele. Este céptico duvida da existência dos homens e das vacas. Para ele, os amigos são uma mitologia por ele construída. Foi ele que criou o próprio pai e a própria mãe. Esta fantasia horrível exerce decididamente um atractivo especial sobre o egoísmo algo místico do nosso tempo.

É quando o simpático mundo que rodeia um homem se obscurece como uma mentira, quando os amigos se desvanecem como fantasmas, quando o rosto da mãe não é mais do que um esboço que ele produzirá, quando um homem que não tem fé em nada nem em ninguém e se encontra sozinho dentro do seu próprio pesadelo – é então que, com vingativa ironia, se escreve o grande mote individualista: “Eis aqui um homem que acredita em si mesmo!"

Uma pessoa que não acredita naquilo que os dados dos seus sentidos lhe comunicam, e uma pessoa que não acredita em coisa nenhuma, estão ambas loucas; porém, a loucura de uma e de outra não é demonstrada pela existência de um erro de argumentação, mas pelo manifesto erro que é a vida de ambas. São pessoas que se encerram em caixas, em cujo interior estão pintados o sol e as estrelas; e que não conseguem sair cá para fora, uma para a saúde e a felicidade do céu; a outra para a saúde e a felicidade da terra. Ocupam uma posição perfeitamente racional - uma posição que é, em certo sentido, infinitamente racional, do mesmo modo como uma moeda de cêntimo é infinitamente circular.
Acontece, porém, que há coisas infinitas que são mesquinhas, como há coisas eternas que são vis e abjectas.”59



2- O Relativismo:

“O Sr. Wells vem com essa fábula de que não podemos falar em cadeiras, porque elas são todas diferentes umas das outras (Kant tinha afirmado que não podemos estar seguros de que dois homens colham o mesmo cheiro de uma flor); mas se as cadeiras forem todas tão diferentes umas das outras, como podemos continuar a chamar-lhes cadeiras?”59

"Existe uma classe de pensadores modernos que vencem todos os abismos e reconciliam todas as guerras falando sobre "aspectos da verdade".
Caso falemos de alguma coisa como um aspecto da verdade, é evidente que alegamos conhecer o que é a verdade; da mesma forma que, ao falarmos sobre a pata traseira de um cão, alegamos conhecer o que é um cão.
Infelizmente, o filósofo que fala a respeito de aspectos da verdade geralmente também pergunta: "O que é a verdade?" Muitas vezes até nega a existência da verdade ou alega ser ela inacessível à inteligência humana. Como pode então reconhecer os seus aspectos?
Lembra um artista que leve um esboço arquitectónico a um construtor, dizendo: "Esta é a fachada sul de uma casa com vista para o mar, que não existe!" Nem quero afirmar que uma casa com vista para o mar pode existir, mas é inacessível à mente humana.
Do mesmo modo, não gostaria de ser o ridículo metafísico que afirma ver em todos os lugares aspectos de uma verdade que não existe.

O Sr. Wells decerto deve saber que, por existirem duas coisas diferentes, por certo haverá similares.
A lebre e a tartaruga podem diferir na quantidade da velocidade, mas devem concordar na qualidade do movimento. Quando dizemos que a lebre se move mais rapidamente, dizemos que a tartaruga se move.
A mais rápida das lebres não é mais rápida que um triângulo isósceles ou do que uma ideia cor de rosa.
Ao dizer que uma coisa se move, afirmamos que outras não se movem. Por isso, ao dizer que as coisas mudam, afirmamos que existe algo imutável.”60

3 - O particular desprezo pelas mulheres, pelo seu modo de pensar e de conceber o mundo e as coisas61:

“Deixemos, por enquanto, as relações de homem para homem nesse encontro que se chama duelo; e tomemos as relações entre homem e mulher, nesse imortal duelo que se chama casamento. Aqui descobriremos, novamente, que as outras civilizações cristãs aspiram a uma espécie de igualdade que pode ser considerada irracional ou perigosa. Assim, é entre as pessoas das classes ditas educadas, na América e na França, que encontramos os dois extremos no tratamento da mulher.
Os americanos escolheram o risco da camaradagem; os franceses a compensação da cortesia.

Na América é perfeitamente possível que um rapaz saia com uma moça para o que ele chama (lamento profundamente dizê-lo) um divertimento; mas ao menos o homem vai com a mulher, tanto como a mulher vai com o homem.
Na França, a moça é resguardada como uma freira enquanto não se casa; mas quando se torna mãe é realmente uma mulher sagrada e quando se torna avó é um terror sagrado.

Em qualquer desses extremos a mulher leva alguma coisa desta vida.

Há somente um lugar onde ela pouco ou nada aproveita: o norte da Alemanha. A França e a América, a esse respeito, aspiram desigualmente a uma igualdade — a América, por similaridade, a França por contraste. Mas a Alemanha do norte aspira deliberadamente à desigualdade.
A mulher fica em pé, não mais irritada do que um copeiro; o homem fica sentado, não menos à vontade do que um convidado. Aí temos uma óbvia afirmação de inferioridade como no caso do sabre e do caixeiro.

“Vais tu tratar com mulheres?”, diz Nietzsche, “não te esqueças do chicote!”.

Note bem o leitor que ele não diz “o cabo da vassoura”, como ocorreria mais naturalmente ao espírito de um espancador de mulheres mais comum e mais cristão, porque a vassoura faz parte da vida doméstica e tanto pode ser manobrada pela mulher como pelo homem. O que aliás acontece às vezes. A espada e o chicote, ao contrário, são armas de uma casta privilegiada.”62



4 - A impossibilidade de conhecer em absoluto as coisas transposto para a linguagem moderna, levou à adopção de afirmações como “aparentemente é assim”, “tudo indica que seja assim” ou “suponho que seja assim”:

“A modéstia deslocou-se do órgão da ambição e foi instalar-se no órgão das convicções, um órgão onde nunca devia estar instalada. Um homem deve ter dúvidas sobre si mesmo, mas não deve ter dúvidas sobre a verdade. Ora, o que se passa hoje é exactamente o inverso. Não é difícil encontrar hoje, a cada esquina, um sujeito que nos lance à cara a afirmação - a frenética e blasfema afirmação - de que poderá estar enganado. Todos os dias nos cruzamos com pessoas que afirmam que, naturalmente, poderão não ter a opinião mais correcta. Claro que a opinião dessas pessoas é a mais correcta, senão elas não teriam essa opinião. Estamos em vias de produzir uma raça de homens mentalmente tão modestos que não acreditam na tabuada.”59






António Campos

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58 Chesterton, São Tomás de Aquino, 1933. Civilização Editora, Porto, 2009.

“Desde que o mundo moderno teve início, no séc. XVI, nenhum sistema de filosofia de quem quer que fosse conseguiu realmente corresponder ao sentido de realidade de quem quer que seja.

Existe uma coisa de comum a Hobbes e a Hegel, a Kant e a Bergson, a Berkeley e a William James: Tem um homem que acreditar numa coisa que homem algum acreditaria, se lha colocassem subitamente diante da sua simplicidade: que a lei está acima do direito, ou o direito fora da razão, que as coisas são apenas como as pensamos, ou, que tudo é relativo a uma realidade que não está aí.

Concordarão que deverá existir um viés quando se diz que os contrários não são incompatíveis ou que uma coisa pode, ao mesmo tempo, ser inteligível e não ser de todo.”

59 Chesterton, Ortodoxia, 1908. Alêtheia Editores, Lisboa, 2008.

60 Chesterton, Hereges, 1905. Ecclesiae, SP, Brasil, 2011.

61 “Na vida conjugal, o casal só deve formar de certo modo uma única pessoa moral, animada e governada pelo gosto da mulher e pela inteligência do homem. Se as mulheres mostram mais liberdade e fineza no sentimento, em compensação os homens parecem mais ricos no discernimento que a experiência dá.”

Immanuel Kant, Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime e Ensaio sobre Doenças Mentais, Edições 70, Lisboa, 2012.

“Schopenhauer imagina que as mulheres são as melhores encarregadas para cuidar das crianças, porque elas mesmas são "infantis, fúteis, limitadas"…É certamente estranho que o nome "filósofo" tenha sido dado a um literato - por mais brilhante que seja - capaz de defender a assombrosa ideia de que amamos aquilo a que nos assemelhamos. (…) De facto, toda a teoria de Schopenhauer sobre a infantilidade das mulheres pode ser refutada com a mais simples e breve das respostas. Se as mulheres são infantis porque amam as crianças, então os homens são efeminados porque amam as mulheres.”


62 Chesterton, The Barbarism of Berlin, 1914:

“Que vem a ser o sofisma da “necessidade” senão uma inaptidão de imaginar o amanhã? Os prussianos ouviram dizer, dos seus homens de letras, que tudo depende de um impulso da vontade, e dos seus políticos que todos os arranjos se dissolvem diante da “necessidade”. A vitória é uma necessidade, e a honra um farrapo de papel.

Disse com insistência que o prussiano é um bárbaro espiritual porque se considera desligado do seu passado, tanto como um homem que tivesse simplesmente sonhado; “bárbaro” é aquele que é hostil à civilização e não o que é insuficientemente civilizado.

Encontramos sempre, no que se refere ao Prussiano, uma coisa de atroz simplicidade, uma coisa simples demais para o nosso entendimento: a suposição de que a glória consiste em empunhar o ferro e não em defrontá-lo. A Cruz de Ferro está no peito do seu rei, mas não é o sinal do nosso Deus. “Vais tu tratar com mulheres?”, diz Nietzsche, “não te esqueças do chicote!”. O prussiano convida todos os homens a virem admirar a beleza dos seus grandes olhos azuis. Se admiram, fica admitido que têm olhos superiores; se não admiram, fica provado que não têm olhos para ver.” 

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