quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A Donzela de Orleans, 1908

Author: G. K. Chesterton

Tradução: António Campos



Os nossos sonhos, os nossos desejos são sempre, insisto, bastante práticos. É a nossa prática que é um sonho.



Neste segundo texto, Chesterton fala-nos da atitude daqueles que, perante o inacreditável, não conseguem acreditar: 

Há um certo tempo li "La Pucelle” de Voltaire, um sarcasmo violento sobre a pureza
tradicional de Joana d’Arc, muito porco e divertido. Não voltei a pensar nele durante muito tempo, mas ocorreu-me de novo esta manhã porque comecei a folhear o novo livro “Joana d’Arc” desse grande e divertido escritor, Anatole France. Encontra-se  escrito num tom paternalista, uma espécie de reverência melancólica; nunca esquece a cortesia e a polidez, como se um senhor distinto protegesse uma moça camponesa por entre a multidão. É sempre respeituoso, quer para com Joana quer para com a sua religião. Eu, sendo um profundo apaixonado de Joana, a Donzela, detive-me a comparar ambos os métodos e confesso que prefiro o ordinário de Voltaire.


Quando um homem da escola de Voltaire quer acabar com um santo ou um herói religioso, ele diz que essa pessoa é um tolo comum, ou uma fraude vulgar. Mas quando um homem como Anatole France quer acabar com um santo, ele engloba o santo como se ele pertencesse ao seu mesquinho jet set literário. Voltaire leu a natureza humana em Joana d’Arc, mesmo que fosse apenas a parte mais brutal da natureza humana. Pelo menos não a transpôs para a natureza voltaireana. Mas o Sr. France transpôs a natureza franceana para Joana d’Arc- toda a frivolidade da educação, toda a natureza distante do moderno homem de letras.

Há um livro que me ocorre claramente, embora ninguém o tenha mencionado. Trata-se de “Vie de Jesus” de Renan. Também demonstra a mesma atitude: a de que se não se ataca a cristandade, pode-se pelo menos infantilizá-la. A minha tendência natural seria exactamente o oposto. Se eu não acreditasse na cristandade, eu seria o mais ruidoso arauto de Hyde Park. Nada é demasiado grande que um homem corajoso não ataque, mas existem coisas demasiado amplas para serem infantilizadas.


Devo dizer que o mero método histórico me parece excessivamente irracional. Não tenho qualquer conhecimento de história, mas tenho tanto uso da razão como Anatole France. E, a mim parece-me, o mero critério histórico é muito insuficiente. Se existem coisas irracionais, então o método Renan-France de lidar com histórias sobrenaturais é inteiramente irracional. O método consiste no seguinte: explicam-se histórias sobrenaturais com fundamento, inventando histórias naturais sem fundamento algum.

Suponhamos que se toma a história do João Pé de Feijão: pode não se acreditar legitimamente que ele trepou pelo feijão até ao céu. Mas o que estes literatos afirmam é o seguinte: a hereditariedade de João, sem dúvida filho de uma mercadora de fruta e de um padre, explica a sua tendência para ver no pé de feijão um acesso para o céu. Além disso, deve ter encontrado algum mágico da Índia que lhe deve ter explicado como se consegue fazer crescer um pé de feijão até ao céu. E vai daí, numa certa noite propícia estes dois amigos recentes semeiam o feijão que cresce até ao céu.

É assim que Renan e France escrevem, só que escrevem melhor. Mas é aí que um racionalista como eu se torna um pouco impaciente e se sente impelido a dizer: “Espera aí, meu caro, o que sabes tu da hereditariedade ou da psicologia do João? Não se conhece nada do João, excepto que algumas pessoas afirmam que ele trepou por um feijão até ao céu. Ninguém repararia nele se tal não tivesse acontecido. Tens que o considerar em termos da religião do pé de feijão, não podes reduzir a religião do pé de feijão exclusivamente a ele. Nós temos um conteúdo para a história e podemos acreditar nele ou não; o que nós não temos é conteúdo para inventar uma outra história.”

Não me parece exagero dizer que este é o método utilizado pelo Sr. Anatole France no que concerne à análise de Joana d’Arc. Uma vez que o seu milagre é inconcebível para o seu materialismo clássico, ele despacha-a para o mundo dos contos com o João Pé de Feijão. Ele tenta inventar uma história real para a qual não se encontra nenhuma evidência. Ele encontra uma explicação científica desprovida de qualquer espécie de prova científica. É como se eu dissesse (embora seja totalmente ignorante em botânica e química) que o pé de feijão cresceu para o céu porque o azoto e o árgon entraram nos cananículos secundários da corola. Falando mais claramente, aquela personagem descrita pelo Sr. France nunca existiu. Segundo ele, toda a energia e sabedoria de Joana terá vindo de um certo padre, do qual não existe nenhum registo nos múltiplos documentos da sua vida.

O único fundamento que encontro para a sua história é esse sentimento altamente democrático e engraçado de que uma moça camponesa não possui ideias próprias. É muito duro para um livre pensador ser sempre democrático. O escritor parece sempre esquecer o que significa a atmosfera moral de uma comunidade. Dizer que Joana colheu a sua visão, de uma virgem derrotando o mal, de um padre, é o mesmo que dizer que uma rapariga londrina com compaixão pelos pobres o aprendeu de um membro do partido socialista. Ela apenas o aprenderia se e quando o membro do partido o aprendesse.

Mas este é o método moderno: o método do céptico reverente. Quando encontra uma vida inteiramente inacreditável de uma perspectiva externa, então ele afirma conhecer o interior. Tal como Renan, o racionalista, que não encontrando sentido na maioria da vida pública de Cristo, construiu um sistema engenhoso sobre os seus pensamentos privados. Tal como Anatole France, que não podendo acreditar, segundo os seus princípios, no que Joana d’Arc fez, confessa-se seu amigo íntimo e pretende saber exactamente o que ela queria dizer. Não posso deixar de dizer que se trata de um modo muito racional de escrever a História; e, mais cedo ou mais tarde, vamos ter que arranjar um método mais sólido de lidar com estes fenómenos espirituais, nos quais a História se encontra manchada e serapintada como o céu com as estrelas.

Joana d’ Arc é suficientemente livre e bela, mas é mais sã do que muitos dos seus críticos e biógrafos. Não recuperaremos o bom senso de Joana até que recuperemos o seu misticismo. As nossas guerras falham porque se iniciam com algo de óbvio e visível- como chegar a Pretória pelo Natal. Mas a sua guerra resultou- porque se iniciou com algo selvagem e perfeito- os santos entregam a França. Ela colocou o seu idealismo no lugar certo e o seu realismo igualmente no lugar certo: nós, os modernos, temos ambos deslocados do seu devido lugar. Ela colocou os seus sonhos e os seus sentimentos nos seus objectivos, onde eles devem estar; ela colocou o seu pragmatismo em prática. Nas guerras imperiais modernas, tudo está invertido. Os nossos sonhos, os nossos desejos são sempre, insisto, bastante práticos. É a nossa prática que é um sonho.


Não nos cabe explicar esta criatura flamejante nos termos da nossa cultura cansada e litigante; antes devemos tentar compreender-nos no brilho destas estrelas fixas. Aqueles que lhe chamaram uma bruxa ardente do inferno eram muito mais sensíveis do que aqueles que a contam como uma donzela sentimental fabricada pelo padre da paróquia. Se eu tivesse que escolher entre as duas escolas dos seus inimigos difusos, eu alinharia com aqueles funcionários subtis que consideram a sua missão divina como infernal, em vez de alinhar com aqueles tios e tias rústicas que a consideram impossível.

(Texto de All Things Considered, 1908. Fotografias da Catedral de Orléans, cidade de que Joana d'Arc é padroeira, tal como de toda a França)

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