sábado, 5 de janeiro de 2013

Chesterton e S. Francisco - II


São Francisco de Assis por G K Chesterton, 1923

 

Este foi um homem admirável na história secular e um modelo de virtude social. Pode descrever-se este demagogo divino como sendo o mais sincero democrata. Pode dizer-se que S. Francisco estava à frente do seu tempo. Pode dizer-se que S. Francisco antecipou o que é de mais liberal e acolhido no mundo moderno: o amor pelos animais, o amor pela natureza, a noção de compromisso social, a noção do risco de degeneração espiritual provocada pela prosperidade ou pela acumulação da propriedade. Pode ser descrito como um herói humano ou humanitário. Na verdade, foi o primeiro herói do humanismo. Poderia ser descrito como uma estrela do Renascimento, embora tenha vivido na Idade Média. E, em comparação com todas estas coisas, a sua teologia ascética pode ser ignorada ou recusada, tida com um acontecimento acidental, felizmente não fatal. A sua religião pode ser considerada superstição, mas uma superstição inevitável sem dúvida, da qual nem mesmo o génio se podia desligar totalmente. Tendo isto em conta, seria muito injusto condenar S. Francisco pela sua recusa voluntária de bens materiais ou censurar-lhe indevidamente a sua castidade. Sem dúvida, mesmo uma análise tão afastada não ignoraria o facto de a sua vida ter sido heróica. Ainda se poderia dizer muito sobre um homem que queria acabar com as cruzadas falando com os sarracenos ou que intercedeu junto do Imperador pelos pássaros. O escritor poderá descrever apenas com um espírito histórico toda a inspiração franciscana que se encontra numa pintura de Giotto, na poesia de Dante, nas peças de teatro maravilhosas que tornaram possível o drama moderno e de tantas outras coisas que são apreciadas pela cultura moderna. Pode tentar fazê-lo, como outros já fizeram, sem colocar a questão religiosa. Resumindo, pode tentar contar a história de um santo sem Deus, que é como escrever sobre Dickens sem nunca mencionar a pobreza.

O outro modo de descrever S. Francisco é do ponto de vista de um devoto. Ele foi o fundador das ordens menores, os franciscanos, seguiu o ideal de pobreza, era um asceta e um místico católico. Ele encontrou uma alegria austera, por assim dizer, nos paradoxos do asceticismo e, às avessas do mundo, na humildade. A história das suas marcas físicas dos estigmas é pública e publicável, os seus jejuns podem ser interpretados num contexto de luta contra o dragão, como era também o caso de São Domingos. Em resumo, ele pode resultar naquilo que o nosso mundo interpreta como negativo. O reverso de todas as luzes e sombras. O que os tolos pensarão ser tão impenetrável como as trevas e mesmo o que muitos sensatos tomarão como tão invisível como escrever a prateado no branco. Um tal estudo de S. Francisco será ininteligível a quem não partilhe a sua religião, talvez parcialmente inteligível a quem apenas não partilhe a sua vocação. De acordo com ambos os juízos, será considerado demasiado bom ou demasiado mau para o mundo. O único problema é que tal julgamento não se pode fazer. É necessário um santo para escrever sobre a vida de um santo.
 
Finalmente, pode-se tentar fazer o que eu fiz. O escritor pode colocar-se na posição de alguém de fora e questionar. Pode colocar-se na posição de quem já admira S. Francisco, mas apenas naquelas coisas que considera dignas de admiração. Pode tentar usar o que é compreendido para explicar aquilo que não se compreende. Pode tentar dizer ao leitor moderno: “Aqui está um homem com quem já simpatizamos pela sua alegria, a sua imaginação romântica, a sua cortesia espiritual e camaradagem, mas que também contém elementos (sinceros e fundamentais) que consideramos atrasados e repulsivos. Mas na realidade foi apenas um único homem e não meia dúzia de homens. O que parece sem nexo para nós, não lhe pareceu a ele. Vamos tentar compreender, com o auxílio da razão, essas outras coisas que nos parecem razoavelmente obscuras, pela sua impenetrabilidade intrínseca e pela ironia do seu contraste.” Não pretendo dizer, naturalmente, que eu consigo fazer um retrato psicológico exaustivo neste esboço básico e rudimentar. Apenas quero afirmar que a única condição controversa que aqui assumo é a de que estou a lidar com alguém com quem simpatizo mas que me é estranho, externo. Nem mais nem menos. Um materialista pode não se importar se as inconsistências são ou não resolvidas. Um católico pode não ver nenhuma inconsistência sequer. Mas eu aqui dirijo-me ao homem comum, empático, mas cético. E eu posso apenas vagamente esperar que, ao analisar a história deste grande santo pelo que tem de pitoresca e popular, eu possa ter permitido ao leitor saber um pouco mais do que sabia antes sobre a consistência do personagem como um todo. Por este meio de análise podemos ter um vislumbre de como um poeta que dá graças a Deus pelo sol muitas vezes se refugiou numa caverna sombria, de como um santo que era tão bondoso para o seu irmão lobo era tão áspero para com o seu irmão asno (asno ou traseiro foi a expressão que utilizou para o seu próprio corpo), de como um trovador que proclamava que o amor lhe abrasava o coração viveu sem a companhia de mulheres, de como o cantor que rejubilou com a força e alegria do fogo se rebolou na neve, de como a canção que grita com a paixão de um pagão “Louvado seja Deus pela nossa irmã, Mãe Terra, que nos dá frutos diversos, relva e flores reluzentes,” termine quase sempre com as palavras “Louvado seja Deus pela nossa irmã, a Morte do corpo.”
 
Traduzido e adaptado por António Campos e Anália Carmo


 
 
                                        A estigmatização de São Francisco - Giotto

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